15 abril 2010

Do tempo perdido ao tempo encontrado: algumas considerações sobre o tempo em psicanálise

Do tempo perdido ao tempo encontrado: algumas considerações sobre o tempo em psicanálise1

Juliana A. Soares2

Nada há de criado que não apareça na urgência, e nada na urgência que não gere sua superação na fala”.

(Lacan, 1953, p. 242)


Prelúdio

Saturno devorando seu filho”, quadro pintado por Francisco de Goya, que está na capa do seminário 4, de Lacan é ilustrativo da imagem fornecida desde os gregos de Saturno/Cronos, deus do tempo, um deus gigante que como traz um fim a todas as coisas que tiveram um começo, é acusado de devorar a própria prole. (Bulfinch, 2006).

Deus imbatível, monstro, senhor do destino são outras das designações/representações de Cronos/Tempo, nos dando a ver, que lutar contra ele é uma luta vã: “o tempo não pára” (há um tempo que passa), que nos conduz irremediavelmente até a morte, o que fez com que o artista tentasse um acordo com o tempo, pela via de um elogio: “És um senhor tão bonito/ Quanto a cara do meu filho/ Tempo tempo tempo tempo/ Vou te fazer um pedido/Compositor de destinos/ Tambor de todos os rítmos/ Entro num acordo contigo (...)”
(Caetano Veloso, “Oração ao Tempo”).

Saturno/Cronos também é o pai de Zeus, embora este último seja tido como pai dos deuses e dos homens.

Cronos é, assim, originariamente, anterior ao reinado dos olímpicos presidido por Zeus e sua luminosidade ordenadora expressa também em razão. De estirpe titânica marcada por insubmissão e violência, Cronos/tempo (ao lado da memória e da história) incessantemente questionam o instituído e o fixado, mantendo tensa relação com a racionalidade olímpica, unificadora e sistematizante. (Pessanha, 1992).

Eis porque falar de tempo pode ser um caminho frutífero para questionar o instituído e o fixado, no campo da psicanálise.

Há não muito tempo, a Internacional dos Fóruns dedicou um encontro – o V Encontro Internacional da IF-EPFCL, realizado em São Paulo, em 2008 – a este tema, tamanha a sua atualidade e relevância, em tempos de banalização, naturalização, burocratização e mercantilização do tempo, “time is money”, tema central também dessa semana de psicologia da USP.

Vemos na cultura de nosso tempo, por exemplo, a tentativa apregoada pelo discurso capitalista de fazer acordos com o tempo a fim de anulá-lo; de por fim a morte, de não envelhecer, de manter-se jovem, paradigma de um suposto ápice humano que nada teme, nem a morte e constrói instrumentos (cremes, células tronco, dietas mil, cirurgias estéticas ) que retardem ou impeçam os efeitos do tempo: "bom é ser sempre jovem".

O tempo na experiência da psicanálise: a intemporalidade freudiana e o tempo lógico lacaniano


Desde Freud, em “Sobre o início do tratamento” e “Análise Terminável e Interminável”, o tempo de uma análise é colocado em questão. Que tempo para uma análise?, podemos nos perguntar. Também com Freud, em “O Inconsciente”, artigo de 1915, apreendemos uma outra temporalidade para o sujeito do inconsciente, que Freud nomeou como “intemporal”.

Os processos do sistema Ics. são intemporais; isto é, não são ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem do tempo; não têm absolutamente qualquer referência ao tempo. A referência ao tempo vincula-se, mais uma vez, ao trabalho do sistema Cs.” (Freud, 1915, p. 192).

Em 1932, já a partir de sua segunda tópica, Freud retorna a esse ponto, frisando a ausência de reconhecimento da passagem do tempo, no id e o quão pouco pôde extrair consequências dessa descoberta:

Muitíssimas vezes, tive a impressão de que temos feito muito pouco uso teórico desse fato, estabelecido além de qualquer dúvida, da inalterabilidade do reprimido com o passar do tempo. Isto parece oferecer um acesso às mais profundas descobertas. E, infelizmente, eu próprio não fiz qualquer progresso nessa parte”. (Freud, 1933[1932], p. 79).

Indicação que não passou desapercebida por Lacan, com quem nos orientamos de modo a extrair consequências da atemporalidade do sujeito do inconsciente e ver nela uma outra lógica temporal, que Lacan nomeou como “tempo lógico”.

Freud dirá mais, subvertendo a noção de tempo cronológico, no qual se estabelece uma continuidade entre um antes e um depois, em linha reta: o inconsciente funciona por retroação, só depois podemos saber o que terá acontecido ou mesmo o que teremos sido. (Lamy, 2000). “O que emerge do inconsciente deve ser compreendido à luz não do que vem antes, mas do que vem depois”. É o depois que dá consistência ao antes, e não o contrário, atribuindo, por exemplo, uma significação de trauma ao antes. Também é por esse mesmo caminho, ou seja, por retroação, que o sujeito pode ressignificar o antes, o que confere uma indicação importante e fundamental para a intervenção psicanalítica.

O que tanto Freud quanto Lacan frisam aí é a de que toda análise é uma experiência de ressignificação, ou seja, de dar novos significados a significantes, a acontecimentos, a coisas que aconteceram na vida do sujeito ou de se verificar a não sgnificação de determinadas coisas. E mais: que essa experiência de ressignificação segue uma lógica que opera retroativamente, distinta da linearidade cronológica.

Freud dá seu testemunho dessa descoberta ao longo de toda sua obra, não sem perplexidade:


(...) a possibilidade de que aquilo que a análise expõe como sendo experiências esquecidas da infância, pode, pelo contrário, basear-se em fantasias criadas em ocasiões que ocorreram na vida adulta”. (Freud (1918[1914], p. 110).



Como o próprio tempo implica a linguagem, tal como ele aparece ao nível da gramática mesmo – passado/presente/futuro – e seus respectivos modos: indicativo, subjuntivo, etc, Lacan designará o tempo do sujeito com o futuro anterior, ou seja, um momento futuro no qual será situado um acontecimento inscrito na estrutura como tendo sido produzido num tempo anterior àquele.


Eu me identifico na linguagem, mas somente ao me perder nela como objeto. O que se realiza em minha história não é o passado simples daquilo que foi, uma vez que ele já não é, nem tampouco o perfeito composto do que tem sido naquilo que sou, mas o futuro anterior do que terei sido para aquilo em que me estou transformando”. (Lacan, 1953, p. 301).


É o que podemos observar de modo exemplar no dizer da infância: correlato estrutural da antecipação provocada pelo adulto e exemplificada belissimamente pela canção João e Maria, de Chico Buarque e Sivuca: ” Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês...”.

Notem que ao dizer “agora eu era herói”, trata-se de um agora que não é presente, mas sim futuro; que lança, portanto, o presente, o ser, ao era, do passado indefinido. Ocorre que a estrutura coloca a criança como sexuada porque a antecipa. Uma vez antecipada, a criança não tem mais remédio que se colocar como sujeitada a esse futuro e ao desejo do Outro: ”Agora eu era o rei, era bedel e era também juiz, e pela minha lei a gente era obrigado a ser feliz”. (Jerusalinsky, 2004).

Entre antecipação e retroação: é assim que o sujeito do inconsciente se move no tempo, apoiado no significante.

Com Lacan (1960), o inconsciente é, a partir de Freud, uma cadeia de significantes que em algum lugar – outra cena – se repete e insiste. O termo essencial é o significante: determinante do significado, vazio de significação.

Se o inconsciente é atemporal e subversivo à cronologia, obedece no entanto com fidelidade às suas próprias leis, descritas por Freud, desde a Interpretação dos Sonhos: condensação e deslocamento, ou seja, efeitos de substituição e combinação de significantes nas dimensões temporais da linguagem respectivamente sincrônica e diacrônica em que eles aparecem no discurso.

O inconsciente ignora o não e o tempo, descobertas freudianas, justamente o que, para o eu, confere uma medida, um limite, um ponto de basta. Como, então, dar um basta ao que não passa? Introduzir uma descontinuidade ao que se apresenta como continuidade sem fim? Ou como sustentar uma clínica psicanalítica segundo uma lógica temporal de acordo com a temporalidade do sujeito do inconsciente? Cronos, ou o tempo cronológico, sua lógica, não nos serve como referência para o inconsciente, já o dissera Freud.

Como surpreender o eu, tão apegado às suas caras certezas, para que o sujeito apareça?


(...) a arte do analista deve consistir em suspender as certezas do sujeito, até que se consumem suas últimas miragens. E é no discurso que deve escandir-se a resolução delas” (Lacan, 1953, p. 253).

Lacan nos dá uma importante precisão quanto a isso, quando se refere à função de corte no discurso: aí se surpreende o sujeito que nos interessa, donde a conclusão de que o discurso na sessão analítica só tem valor por tropeçar ou até se interromper.

Esse corte da cadeia significante é único para verificar a estrtura do sujeito como descontinuidade no real. Se a linguística nos promove o significante, ao ver nele o determinante do significado, a análise revela a verdade dessa relação, ao fazer dos furos do sentido os determinantes de seu discurso” (Lacan, 1960, p. 815)


Em 1964, no Seminário 11, Lacan nos fala do estatuto ético do inconsciente. Se o inconsciente não tem estatuto ôntico, seu tempo também não o tem. Trata-se de um tempo que não é. Um presente infinitamente pequeno, que não tem duração, evanescente, um instante que escapa.

Lacan sublinha que este é o tempo próprio de emergência do inconsciente, uma pulsação do inconsciente, ou seja, um movimento de abertura e fechamento, tal como Jano3. Assim, o inconsciente se abre em certos momentos – ato falho, sintoma, sonho, chiste – e cabe ao analista, nestes instantes fugazes, sem perda de tempo, aí intervir com seu ato, qualquer que ele seja, sob o risco de deixar passar o que importa e compactuar com o adiamento neurótico. (Lamy, 2000). Trata-se, ainda, de fazer incidir, a partir da abertura do inconsciente, Kairós, o tempo oportuno, o tempo próprio do ato, que faz operar a descontinuidade do imprevisto, a ruptura do instante, a sobrevinda do acontecimento4. Aquilo que é apreendido quando se trata de Kairós não é nada mais que um Cronos contraído e abreviado5.

Por isso é preciso extrair da repetição – da fala, dos sintomas – o tempo oportuno, para que o passado sem sentido possa adquirir uma significação posterior.

Há um texto belíssimo, poético de autoria da psicanalista Dominique Fingerrmann, para o qual os remeto: “O tempo na experiência da psicanálise”, no qual ela propõe uma analogia entre o tempo em música e numa análise.

Diz ela, o tempo em música é o seu ritmo, o seu andamento, os quais fazem a obra. A cadência, repartição da descontinuidade no fluxo contínuo de sons recorta instantes, distribuindo silêncios e evidenciando sequências, parece produzir a efetivação, progressiva e irremediável, do ponto de conclusão. Passado este ponto, qualquer música seria uma ladainha monótona, ou talvez um ruído. Da mesma forma, o andamento de uma análise do começo até o fim resulta de seu tempo, recortando instantes que isolam sequencias, que produzem consequencias. A cadência da entrada do analista – nos ditos do sujeito – condiciona uma descontinuidade que produz, em ato, no final das contas, o limite, a conclusão, fazendo da série sem fim dos ditos uma sequência finita. Por isso um tempo é necessário, para extrair do tempo que passa o tempo que falta e o transformar no tempo que resta. Uma análise deve conduzir um sujeito a uma outra vivência do tempo que passa. (Fingermann, 2009)


A temporalidade peculiar e necessária de uma análise permite passar de um tempo perdido até o tempo encontrado. Não o tempo “reencontrado”, isto é, o tempo que se encontra numa análise não é o tempo da busca do tempo perdido, é o tempo encontrado enquanto encontro com o real, é o tempo achado, com o qual a gente “topa” como “trouvaille”. (Fingermann, 2009, p. 69).


Nos deparamos logo no início de um tratamento psicanalítico com uma “estranha temporalidade”, apontando para um tempo que não passa: as reminiscências das histéricas, o “fora do tempo” da pulsão, o retorno do recalcado do sintoma, a persistência do trauma, a inércia da fantasia, as voltas da repetição, o caleidoscópio dos sonhos, a reedição da transferência... Tempo esse que se desdobra em uma cadeia, “falar toma tempo”.

Dominique (2009) precisa que Lacan introduz o tempo na direção do tratamento, estabelecendo uma relação entre a lógica do sujeito e a lógica da cura. Onde era a repetição, Lacan faz intervir o ato como descontinuidade no sentido maciço da neurose, o que traz implicações para a dificuldade neurótica em agir: “é sempre tarde demais” ou “ainda não é chegada a hora”. O tempo sempre faz falta – é curto demais – para dizer do ser...

É no ponto mesmo da “inalterabilidade do reprimido” que Lacan insere o tempo lógico, produtor do momento de concluir, intrusão do analista e de seu naipe (silêncio, voz, presença, corte) que orienta e conduz a análise até sua conclusão. É assim que podemos apreender como o ato do analista produz no final das contas o momento de concluir da análise: o ato do analisante. (Fingermann, op. cit.).

E como Lacan define o tempo lógico?

Lacan (1945), ao tratar dos tempos lógicos, vai estabelecer três instâncias temporais: instante de ver, tempo para compreender e momento de concluir. Ele, então, nos dirá que estas instâncias do tempo são constituintes do processo do sofisma e como tais se apresentam primeiramente com um erro lógico, denunciando a conclusão a que o sujeito pode chegar pelo que ele verdadeiramente não vê, o que cria um efeito de certeza antecipada.

Lacan (op. cit.) passa, então, a examinar a qualidade de cada um desses tempos que ele denominará ‘momentos da evidência’ ou ‘tempos de possibilidade’. Com relação ao primeiro tempo, ele nos diz que o sujeito chega neste momento por uma exclusão lógica, por exemplo, um homem sabe o que não é um homem (Ele não é cadeira, não é gato etc). No entanto, algo desse instante subsiste ignorado pelo próprio sujeito e aparecerá no segundo tempo (tempo para compreender) em que este, por meio de uma intuição, “sabe” que os homens se reconhecem entre eles por serem homens, ou seja, um não se reconhece senão no outro (reciprocidade), apenas vindo a descobrir o atributo que é o seu (e que o diferencia dos demais homens) na equivalência de seu tempo próprio.

Para Lacan (id.), este é um certo tempo que se define (nos dois sentidos de tomar seu sentido e de encontrar seu limite) por seu fim, através da conclusão a que o sujeito pode chegar. Assim, o terceiro tempo é o momento de concluir o tempo para compreender e que, por isso mesmo, só pode ser efetuado pelo sujeito (“eu”) que formou sua asserção ou afirmação subjetiva sobre si fundada numa certeza antecipada e, nesse sentido, passível de ser questionada. Lacan relaciona o momento de concluir com a pressa e a urgência. Levando em conta os exemplos precedentes, neste terceiro tempo o sujeito diria “Eu afirmo ser um homem, de medo de ser convencido pelos homens de não ser um homem”.

É a possibilidade da dúvida sobre esse momento de concluir que leva o sujeito a produzir, a falar.

Assim, quando o sujeito se propõe a falar mais, pode ir contextualizando sua fala, dando um sentido a ela que, de início, encontra-se imersa em uma grande polissemia, pela dispersão. É isto que possibilita que o discurso do sujeito retroaja promovendo amarrações, em uma espécie de costura6 de suas questões no discurso. Em outras palavras, é o que possibilita a produção de um saber sobre si. “O saber é o que se articula”.

Como não se trata de tempos cronológicos, lineares, mas lógicos, o sujeito só chega ao terceiro tempo porque passou pelos dois primeiros, os quais são absorvidos no momento de concluir e produzem um efeito sobre o instante de ver; e vice-versa, o primeiro tempo só existe porque o sujeito passou pelos segundo e terceiro tempos. E daí podemos depreender a dialética aí implicada: tese-antítese-síntese.

Podemos nos servir desta lógica temporal para pensar os tempos da constituição do sujeito, os tempos do Édipo, da fantasia, das entrevistas preliminares, do período de todo o processo analítico, ou ainda o tempo de duração de uma sessão.

Esquematicamente e de modo bem simples, diríamos que em uma análise o instante de ver é o momento em que o sujeito vê a repetição (dá de encontro) através da pontuação do “analista”: encontro com o real. É que o que estorva o sujeito não é o passado, mas o real. O tempo para compreender se desenvolve durante as produções da sujeito acerca da pontuação da repetição, e que pode levá-lo ao momento de concluir, pondo fim à repetição. É o tempo, ainda, da hesitação e do adiamento. O que sou eu para o Outro? O que o Outro quer de mim? “Ser ou não ser, eis a questão”.

Já o terceiro tempo mostra-se em uma espécie de fechamento que, paradoxalmente, anuncia uma abertura para outra questão, em que o sujeito conclui apesar e da falta de saber, sem o Outro.

Neste processo lógico, o sujeito faz amarrações, “costura” suas questões passando de uma posição passiva à ativa, através de um circuito que nunca se satisfaz, apenas faz borda ao redor do vazio onde se localiza a desejo. (Soares, 2002).

Retomo a pergunta: Qual é a medida de uma análise? É o corte da sessão que produz a análise como finita. A partir do corte se precipita uma significação. “Não há tempo a perder”. O sujeito precisa decidir, precisa do ato que precipita a decisão. Qual é a função do corte? O ato introduzido pelo corte causa efeitos de sujeito: surpreende, esvazia e evidencia a suposição do sujeito no Outro. Qual é a forma de o sujeito responder ao desamparo, à ausência de resposta do Outro? (Fingermann, 2009)

A medida de uma análise são seus cortes. Quantos cortes sua análise durou? Donde a importância da frequência das sessões que acolhe a alternância sessão – corte – intervalo, estabelecendo um ritmo. O analista, todas as vezes, corta as sessões: é algo da ordem do imprevisível, é responsabilidade intempestiva do ato analítico. Suspende-se uma continuidade. Isola-se uma sequência na qual pode ser lida uma suposição do sujeito. (Fingermann, op. cit.). “Isauro-morto-mico”. “Sou sempre a vítima”. Vamos parar aqui! Não, vamos continuar. Paramos aqui. O corte não faz sentido.

É o corte do analista na série infinita da associação livre, nas voltas dos ditos, que faz aparecer o “tempo” da neurose, e suspende por um tempo a sua razão fantasmática. Assim como na música, na poesia e na dança, o tempo é trabalhado internamente para, no conjunto, ser suspenso.

Quantas vezes se interrompe a suposição de saber no Outro para que caia a ficha da sua inconsistência?

Qual a relação do neurótico com o tempo? O obsessivo posterga, adia porque sempre antecipa tarde demais, enquanto que o histérico repete sempre o que há de inicial em seu trauma, um certo cedo demais, uma imaturidade fundamental. Para ambos, nunca é chegada a “hora da verdade” de seu desejo: há sempre uma fuga, uma vacilação. Se o neurótico está sempre perdendo a hora é por estar suspenso à hora do Outro, assim como ao desejo do Outro: o neurótico deseja enquanto Outro. (Quinet, 2007).

Quanto tempo necessário para chegar ao fim? O tempo é preciso, até que o tempo do analista produza, à medida de seus golpes, o suspense da espera, e a suspensão do sentido. Essa duração só pode ser antecipada para o sujeito como indefinida: não podemos prever no sujeito qual será seu tempo para compreender.

Ao eterno adiamento do neurótico (“ainda não”) ou à lamentação e revolta neuróticas (“não dá mais tempo”), Lacan propõe assim a função da pressa, a urgência em concluir, o corte, interrompendo as hesitações neuróticas e rompendo com o gozo do discurso, o blá blá blá, para provocar a emergência do desejo e precipitar um efeito de verdade. Na tensão entre a atemporalidade do inconsciente e o tempo como limite, corte, situa-se o trabalho analítico, na tentativa, pois, de tornar finita a análise (Lamy, 2000), e de fazer barra ao gozo presente nas repetições, narrações e significações intermináveis. Neste sentido sujeitar-se ao relógio não seria sujeitar-se à previsibilidade do gozo?


(...) é uma pontuação oportuna que dá sentido ao discurso do sujeito. É por isso que a suspensão da sessão, que a técnica atual transforma numa pausa puramente cronométrica e, como tal, indiferente à trama do discurso, desempenha aí o papel de uma escansão que tem todo o valor de uma intervenção, precipitando os momentos conclusivos. E isso indica libertar esse termo de seu contexto rotineiro, para submetê-lo a todos os fins úteis da técnica”. (Lacan, 1953, p. 253).


Com Lacan pergunto: Por que torná-la impossível nesse ponto privilegiado?

Ao fim e a cabo, trata-se com o corte de instaurar a possibilidade de o sujeito gozar do “instante-já”, na contramão do adiamento e da vacilação neuróticos, ocasiando uma abertura para o tempo atual do desejo e uma outra vivência do tempo que passa, o “momento oportuno”, capaz de produzir ato, desta vez, por parte do analisante. E esse é todo o percurso de uma análise, do seu início ao fim.


Notas.

1 Trabalho apresentado oralmente em mesa-redonda intitulada “Discutindo a temporalidade na clínica psicanalítica”, na IX Semana de Psicologia da FFCLRP-USP, em 19/08/2010.


2 Psicóloga e mestre em Educação Escolar pela FCLAr-UNESP. Professora Assistente do curso de Psicologia da UNAERP. Atual diretora de Lalíngua-Espaço de Interlocução em Psicanálise.


3 Divindade guardiã das portas, geralmente apresentado com duas cabeças, pois todas as portas se voltam para dois lados. Com suas duas faces representa, no plano das temporalidades, a dupla dimensionalidade do tempo, Cronos e Kairós. (Bulfinch, 2006).


4 Marramao, G. Kairós apud Lorenzetto, B. M., 2010. O silêncio das sereias: tempo, direito e violência na modernidade. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Federal do Paraná – UFPR, Curitiba.


5 Agamben, G. O tempo que resta apud Lorenzetto, B. M., 2010, op. cit.


6 Como diz a psicanalista Sílmia Sobreira o nosso ofício é de corte e costura.



Referências


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LACAN, J. (1953). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 238-324.


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