15 abril 2010

Psicanálise e Literatura

Lalíngua
Ribeirão Preto 16/02/08
Psicanálise e literatura
Profa. Dra. Flavia Trocoli (UniAnchieta/Unitau/Outrarte-UNICAMP)

Agradecimentos:

1) Do título ao subtítulo:
Ao título dessa conferência Psicanálise e literatura, gostaria de acrescentar uma espécie de subtítulo que desencadeou as minhas errâncias nessa apresentação, eis o norte, ou seria melhor dizer o corta (?): Eu sou a escrita: linguagem e subjetividade em Virginia Woolf. Antes de desdobrá-lo, duas palavras sobre as relações entre literatura e psicanálise.
O prisma através do qual leio Virginia Woolf é efeito das minhas leituras do retorno a Freud de Jacques Lacan. A psicanálise subjaz ao modo como corto, analiso e interpreto os textos de Virginia Woolf. Por que subjaz? Porque a psicanálise lacaniana não pode se oferecer como um saber que explica o literário. Ela se apaga como conteúdo para se tornar um lugar de onde se lê, para fazer surgir aquilo que é mais próprio aos dois campos: o inconsciente como saber que não-se-sabe exposto no texto. Subjaz porque o que interessa é dar a ver as leis, próprias do literário, que regem o ponto de impasse-do-sentido. É o jogo sonoro francês entre effaçon (apagar) e façon (fazer) que, aqui, rege as relações entre psicanálise e crítica literária: é só quando se apaga a psicanálise aplicada ao texto é que se faz uma leitura, de fato, lacaniana do literário.
Dito isso, me parece justificado o apelo a um subtítulo: Eu sou a escrita: linguagem e subjetividade em Virginia Woolf. A partir dele, gostaria de fazer ressoar um dizer de Lacan: “Eu não sou um poeta, mas um poema. Um poema que se escreve, embora tenha ares de sujeito.” (no prefácio à edição inglesa do seminário 11)
Convido vocês a atravessarem comigo as questões em torno da linguagem e da subjetividade para pensarmos como em The waves, de Virginia Woolf, o sujeito passa à posição de objeto na e pela escrita. Porém, chegar à escrita, à lituraterra, em The waves, de Virginia Woolf, se fez na travessia do romance A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector. Nessa obra, a narradora-protagonista recalca sua posição de objeto para falar. De Clarice Lispector a Virginia Woolf perfaz-se a trajetória da coesão à dispersão, do cair ao dissipar, do relato ao ato, da fala à escrita. O que está em jogo nessa cena da escrita ou nesse escrever em ato que é The waves? Estão em jogo a dispersão, a sonorização e a voz.
Primeiramente, refaçamos o caminho pelo romance de Clarice Lispector.

2) A paixão segundo G.H.: do ato ao seu relato
“como cessar de ser um objeto tomado no desejo do Outro? Como pode bem nascer um sujeito, a despeito de sua dívida, daquilo que é devido? Sim, como, senão graças a uma operação em que o produto se torna ator, que produz o que o faz ator, conforme o desfile implacável do processo secundário freudiano, da infinita produção do pensamento. [...] Qual é a função desse encadeamento constante do pensamento e da fala que disso dá conta? Sua primeira função é ser performativa, isto é permitir a existência do sujeito que, ao falar, recalca sua posição de objeto do Outro.”
Gérard Pommier

A entrada no quarto da empregada e o ato de comer a barata se dão numa dimensão de corte, de ruptura. Mas sua narrativa produz um encaminhamento que atenua o efeito da irrupção. Diferentemente da força dispersiva que estrutura The waves, em PSGH, vigora uma força coesiva. Enquanto em The waves, a dispersão aponta para o literal e não deixa o Eu se fixar. Em PSGH, o funcionamento metafórico e metonímico é produtor da coesão. O Eu que fala em PSGH não pode ser instantaneamente enquadrado na leitura do romance moderno em que o problema do foco narrativo tornou-se a questão da perda de foco e, então, “quem fala” fala de um lugar vazio.
Ao contrário, falar de “quem fala” em PSGH implica pensar a figuração não de uma focalização perdida, mas sim de uma focalização vertiginosa. Vertigem entendida como a oscilação entre um “Eu” que designa um lugar vazio e um “eu” que resiste a esse vazio, a essa dissolução.
Dado este salto, é preciso decompô-lo em passos. Faz-se necessário delinear este caminho do ato ao pensamento, do literal à significação, de um ela, que emoldura, à um eu, que ancora, afinal “C.L.” já advertira seus “possíveis leitores”: “a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente - atravessando inclusive o oposto daquilo de que se vai aproximar.” (PSGH, 5)
Através do ato de comer a barata, G.H. se vê confrontada com o impossível: lugar onde nada falta. Posteriormente, esse ato resiste à metaforização, à produção de sentidos, e provoca a cogitação de G.H. sobre a dimensão de loucura do que lhe aconteceu. Loucura que G.H. associa diretamente ao contínuo, ao que não comporta a palavra que, inevitavelmente, segmenta. Estar em continuidade com a “própria coisa” é justamente consisti-la sem nomeá-la, sem ultrapassá-la:

“Sentada, consistindo, eu estava sabendo que se não chamasse as coisas de salgadas ou doces, de tristes ou alegres ou dolorosas ou mesmo com entretons de maior sutileza – que só então eu não estaria mais transcendendo e ficaria na própria coisa. Essa coisa cujo nome desconheço, era essa coisa que, olhando a barata, eu já estava conseguindo chamar sem nome” Lispector (1998a, p.86)

Ao estar “consistindo”, G.H. não “sabe”, mas “estava sabendo”, pois “consistir” não admite um saber no presente. O que consiste interdita o dizer que já provocaria um deslocamento e um corte. Só se sabe que se “consistiu” no “só depois” em que o impossível já está perdido, e daí consistir já não mais “é” pois já “está” na cadeia de significações.
E é somente às custas da errância da palavra, das repetições, das associações, das substituições que o indizível encontra uma possível e parcial dizibilidade. Portanto, a “carne infinita” e perdida transmuta-se 1) em oscilação significante, como por exemplo, as designações para a experiência que vão: do divino ao diabólico, do inferno ao paraíso, da vida à morte, da repulsa ao fascínio; 2) em ambivalência, exemplos: “nojo fascinante”, “morte vivificadora”; e 3) em substituição: neutro, nada, nó vital. Errância e polissemia são efeitos do trajeto do consistir impossível ao insistir em significantes sempre parciais.
Não tarda a se estabelecer aí um paradoxo, que talvez seja responsável pelo “efeito de estranhamento” e que revela que este material pretensamente literal é fonte de metáforas, ou mais precisamente, é ele próprio metáfora dessa barata que em outra cena fora apenas letra.
Pensar sobre o que foi vivido no quarto da empregada é não mais vivê-lo, é já ter uma outra coisa. O “é como” e o “como se”, amplamente utilizados no texto, instauram um hiato entre aquilo que foi a experiência e o que o eu conta ou pensa dessa experiência. E, se penso, não mais sou.
A desistência da qual a narradora fala no final do relato poderia ser pensada como reconhecimento tanto de uma impossibilidade de literalização do acontecimento, em que a linguagem se destituísse da metáfora, quanto de que, como dirá G.H., só se terá a mudez através da voz, o vazio através da linguagem, a coisa através de um pedaço de coisa. Cito:

“Olha só o que é tudo: é um pedaço de coisa, é um pedaço de ferro, de saibro, de vidro. Eu me disse: olha pelo que lutei, para ter exatamente o que eu já tinha antes, rastejei até as portas se abrirem para mim, as portas do tesouro que eu procurava: e olha o que era meu tesouro!O tesouro era um pedaço de metal, era um pedaço de cal da parede, era um pedaço de matéria feita em barata. [...] Minha exaustão se prostrava aos pés do pedaço de coisa, adorando infernalmente. O segredo da força era a força, o segredo do amor era o amor – e a jóia do mundo é um pedaço opaco de coisa.” Lispector (1998a, p.136-137)

Nesse fragmento, embora não se localize a elisão do significante que designa a coisa, ocorre uma operação homológa a um processo metonímico: a coisa substituída por um pedaço de coisa, a barata substítuida por sua antena, a parede substituída pela caliça. Primeiramente, vê-se marcada a perda da coisa. E, na substituição, um deslocamento é enfatizado, o segredo não está na coisa, mas em suas partes. Ter na boca a massa branca da barata é o mais absoluto silêncio. Mas perder é possibilidade de ter o segredo crispado de subtrações, porém configurado.
A esse processo homólogo ao metonímico, juntam-se as comparações que não constituem metáforas que substituem e renomeiam. E os oxímoros insistentes no texto também são estratégia de manutenção, por acúmulo, de dois termos: morte e vida, terror e fascínio, etc.. Nesses procedimentos, vigora uma resistência a situar a outra cena enquanto evanescência.
A outra cena não se apresenta apenas como efeito, mas precisa figurar como presença. Insinua-se aqui uma diferença decisiva entre The waves e PSGH. Em The waves a outra cena produz efeitos de dispersão, em PSGH a outra cena estabelece-se principalmente como referência a ser reproduzida.
A narradora precisa manter claramente as conexões em sua fala entre a barata e sua antena, como se o primeiro termo resistisse a desaparecer. Assim, não é por acaso que Solange de Oliveira tenha pensado o palimpsesto como estrutura do texto que metaforiza as camadas da barata. O funcionamento é antes por acúmulo do que propriamente por apagamento e dispersão.
Ao mesmo tempo que diante da empregada e da barata desmorona o mundo de G.H., ao tentar compreender este desmoronamento, a narradora vai sobrepondo outras camadas, outras significações, os escombros são mantidos. A barata ao entrar na cadeia significante se divide e torna-se metáfora. A terceira perna, que de fato ela perdeu, ao entrar na cadeia significante se mantém como virtualidade. Tal como nos versos de Chico Buarque: “Oh, pedaço de mim/Oh, metade amputada de mim/Leva o que há de ti/ Que a saudade dói latejada/ É assim como uma fisgada/No membro que já perdi.” Eis aí um outro modo de dizer a vertigem.
Logo, em PSGH, o esvaziamento é sentido como “queda”, como “desmoronamento”, como “vertigem”, justamente porque se pode pensar numa fixação mais sólida do que aquela que vigoraria para as vozes de The waves. G.H. chega, agonicamente, “à altura de poder cair” (PSGH, 173), Bernard diz sem culminância: “I could not recover myself from that dissipation.” (W, 279) A diferença entre cair e dissipar resume o que apontei acima.
O romance intitulado A paixão segundo G.H. divide-se em trinta e três seções e a operação metonímica já se iniciara na sexta seção, quando G.H. prende a barata na porta do armário. Daí em diante, em diversos momentos, a barata será designada através de sua divisão: “A barata de súbito vomitou pela sua fenda mais um surto branco e fofo.”; “Também ao sol estava a barata bipartida.” Ou seja, é dilacerado que o vivo participa do reino da palavra.
Essa divisão do corpo da barata não pode ser dissociada da divisão subjetiva de G.H.. Pode-se dizer que G.H. está dividida entre o ela que emerge em silêncio do encontro com a barata e o eu que tenta representá-lo.
No 2o e 4o parágrafos da primeira seção de PSGH, a narradora-protagonista usa a palavra “engastar”. Primeira ocorrência: “Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei perdida, porque não saberei onde engastar meu novo modo de ser - [...]” (PSGH, 7) Segunda ocorrência: “Até agora achar-me era já ter uma idéia de pessoa e nela me engastar: [...]”(PSGH, 8) Entre algumas acepções dicionarizadas, destaco: “fazer ficar ou ficar ou estar preso”, “encravar-se”; “intercalar(se)”. Lendo a primeira ocorrência à luz da segunda, pode-se pensar que G.H. “precisa” encaixar seu “novo modo de ser” - o “ela” - no mesmo sistema de referências a que o “eu” estava submetido, a saber: à fixação - “E eu quero ser presa”, a um único centro de perspectiva sobre o mundo - “O relato de outros viajantes poucos fatos me oferecem a respeito da viagem: todas as informações são incompletas.” No entanto, entre a fixação e a perspectiva única intercala-se esse “ela” que é efeito da dissolução do “eu”. “Ela” que, no entanto, diz “eu”.
G.H. se vê sendo um ela e tenta tornar pessoal aquilo que é exterioridade: “Pois o sangue que eu via fora de mim, aquele sangue eu estranhava com atração: ele era meu.” (PSGH, 55) Segundo G.H. veicula um esforço de se tornar autora de uma experiência em que padeceu da irrepresentabilidade da barata, uma vez que esta primeiro apareceu numa dimensão de coisa, experiência veiculada pela paixão.
É preciso, contudo, marcar que se a narradora-protagonista usa o artigo definido para aquilo que metaforiza o eu perdido no quarto da empregada, por exemplo “a terceira perna”, não o usa artigo diante do eu, não diz o eu. Leio nesse procedimento uma tentativa de não fixar definitivamente o eu, deixando-o indeterminado, ele pode transitar por várias posição, pode estar no ato de enunciar “Eu” sem ser irremediavelmente fixado pela terceira perna “do eu”. A divisão entre ser, marcado com ênfase na terceira pessoa mas podendo figurar na primeira pessoa, e dizer/pensar na primeira pessoa é que engendra a vertigem de G.H. E se penso, não mais sou.
Assim, ao falar, G.H. não se mantém no lugar de objeto olhado pela barata. A dominante do texto não é a materialidade da massa branca, mas sim os efeitos subjetivos, as mudanças de lugares subjetivos, causados pelo olhar da barata. Ou, dizendo com mais precisão, a vertigem é também provocada pela divisão entre uma materialidade que se impõe pelo choque - as cascas da barata, os olhos multifacetados – e uma subjetividade que lança mão do pensamento, das idéias e das metáforas para fundar um novo modo de olhar a própria história, de revisitar e de reencadear um destino pessoal. G.H. fala para encontrar novas significações para seu ser. Do ato ao relato.
Seis traços abrem o romance PSGH e são seguidos de um enunciado que começa com letra minúscula: “- - - - - - estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender”. (LISPECTOR, 1986, p.7) Acrescidos de mais um, os seis traços retornam no momento em que G.H. mata a barata e fecha os olhos. Os traços, nesse segundo momento, inscreveriam a ausência de olhar – ver e ser visto – como também a própria morte. Numa leitura retroativa, é uma palavra-faltante que abre o relato de G.H., ou mais precisamente, esses traços estariam no lugar da barata-coisa-escultura, perdida em “Outra cena”. Esvaziado de seus predicados e pontos de referência, o EU da “Outra cena” seria um puro lugar de enunciação, um escultor ou um porta-voz da animalidade da barata. A narradora, de fato, tenta tornar-se um ponto-cego na cena e se apreender dos ângulos da barata e da empregada (Cf.: OLIVEIRA, 1989). Mas como a própria G.H. enuncia: “A desistência é uma revelação.”
Dito isso, num momento inaugural e ideal, pode-se pensar que a narradora estaria, tal como Francis Ponge, tomando “o partido das coisas” e a barata-escultura se alinharia entre esses objetos pongianos como a aranha ou o camarão?
“A aranha:
[...] Mas desde logo, como ela age?
De um salto ousado? Ou se deixando cair sem perder o fio de seu discurso, para volver de novo muitas por diverso caminho ao ponto de partida, sem ter traçado, estendido, uma linha que por seu corpo não fosse passada – de que todo inteiro este não participasse – a um só tempo fiação e tecido? [...]” (Apud: CAMPOS, 1997, p. 218)

Embora seja possível apreender uma metáfora explícita para o escritor e para a escrita no fragmento citado, não se sai do âmbito daquilo que Ponge chama de “poesia ativa”, em que o poema, obedecendo a uma “fúria de expressão” dos objetos, é uma operação com a linguagem devidamente dissociada da moldura pessoal que o poeta emprestaria às coisas. Estaria aqui uma chave para compreender a frase de Beckett: “O artista é ativo, mas negativamente”? (BECKETT, 2003, p.69). O artista ativo age sob o efeito do olhar, da forma e das palavras ditadas pelo objeto. A arte literária é, então, entendida como um “tomar partido das coisas = levar em consideração as palavras” (PONGE, 1997, p. 30), isto é, ser-palavra.
No início de seu relato, G.H. remete-se a um desejo de rompimento com a ordem da palavra significante para penetrar na ordem da palavra-coisa, lê-se: “Só poderei fazer a transcrição fonética. Há três mil anos desvairei-me, e o que restaram foram fragmentos fonéticos de mim.”(LISPECTOR, 1986, p.22) Essa materialidade da palavra é evocada pela “forma imanente” que a narradora acredita se impor no e pelo material da escultura. A palavra é aquilo que corta e distingue, logo faz com que se perca o indistinto, mas, a escultura, segundo G.H., seria o paradigma para a materialização dessa “carne infinita”, sem cortes, que para Clarice Lispector é o Real. G.H. diz que o ato de esculpir era o pré-clímax daquilo que aconteceria no quarto da empregada: “ou por ter tido, através ainda da escultura, a objetividade forçada de lidar com aquilo que já não era eu.”(LISPECTOR, 1986, p.22)
No ato de esculpir, ou no ato de falar como se esculpisse, G.H. seria “receptora do choque” e “pura doadora de forma”. Porém, o texto que G.H. produz é tanto um apagamento desse choque e dessa objetividade acima descritos, quanto uma luta contra o significante que apaga a coisa, quando se toma a primeira pessoa do discurso e se fala. A presentificação da Coisa no corpo puramente vivo da barata, o Eu disperso, a posição de objeto, a palavra sonorizada, que transcreve o real, e a escultura formam um campo exterior àquilo que a narradora, de fato, escreve ou fala. Não são poucos os momentos em que os narradores claricianos declaram sua aversão pela escrita e pela literatura e anseiam um outro modo de representação.
O “ela” apagado da Outra cena é subordinado ao eu que fala na narrativa e recai-se na questão da vertigem, pois esculpe-se com palavras, ou melhor, fala-se sob as leis da significação e com um eu: “para que um dia enfim desabrochasse essa matéria desconhecida e feliz e inconsciente que era finalmente: eu! eu, o que quer que seja.”(LISPECTOR, 1986, p. 49) O drama do dizer de G.H. ou a maneira (façons) como ela escreve e maneja o apagamento (effaçons), de fato, restaura um eu pessoal ativo, no lugar da poesia ativa impessoal. Ainda que os olhos multifacetados e o corpo em camadas da barata forneçam en abîme a estrutura do texto, não é a materialidade da barata que engendra a fala de G.H. é justamente a sua transformação metonímica e metafórica fixada como referência. Passando da coisa ao significante, ou da escultura ao relato, G.H. assegura a distância entre a palavra que metaforiza e o ato que materializa. Sua fala recalca seu ato.
Assim, ao tentar, no presente do indicativo, “verbalizar em ato” (PONGE, 1970, p.92), G.H. não se mantém no lugar de objeto olhado pela barata. A dominante do texto não é a materialidade da massa branca, mas sim os efeitos subjetivos, as mudanças de lugares subjetivos, causados pelo olhar da barata. Ou, dizendo com mais precisão, a vertigem é também provocada pela divisão entre uma materialidade que se impõe pelo choque - as cascas da barata, os olhos multifacetados – e uma subjetividade que lança mão do pensamento, das idéias e das metáforas para fundar um novo modo de olhar a própria história, de revisitar e de reencadear um destino pessoal. Ou seja, G.H. não é uma “pura doadora de forma”, mas uma doadora de forma contaminada por uma identidade pessoal.
Sob este prisma, A paixão segundo G.H. não consegue criar uma “poesia ativa” e impessoal e cai no “dogma do subjetivismo”. (Cf.: GIRARD, 1961, p. 42) A escrita impossível, sonorizada, que a prática da fala de G.H. recalca é o texto de The waves. Se em PSGH está em jogo uma prática da fala, das significações, que recalca, represa, o gozo mítico do corpo da barata, em Virginia Woolf se tem uma prática da letra que provoca a erosão do significado, uma pura perda, e o gozo dos sons isolados que a escritura desmascara?

3)The waves: a escrita em ato
devemos conceber a voz de uma maneira estritamente lacaniana, isto é, não como portadora de plenitude e de autopresença da significação (no sentido de Derrida, que assim analisa a concepção husserliana), mas como objeto sem significação, um resto objetal rejeitado pela operação de significação, pelo basteamento. A voz é o que resta depois de termos subtraído do significante a operação retroativa de basteamento que produz a significação.
Slavoj Zizek

O texto de The waves, é composto de nove Interlúdios, oito séries de Monólogos, que alternam as vozes de Bernard, Louis, Neville, Rhoda, Susan, Jinny, um Monólogo longo, na voz de Bernard, o escritor, e um Interlúdio reduzido a um único enunciado que encerra o texto. Os Interlúdios são cenas sem Eu, estão em itálico e separados dos Monólogos por espaços em branco.
Cito um trecho do primeiro Interlúdio na tradução de Lya Luft que modifiquei ligeiramente:
O sol ainda não nascera. O mar era indistinguível do céu, exceto por estar um pouco encrespado, como um tecido que se enrugasse. Gradualmente, conforme o céu alvejava, uma linha escura estendeu-se no horizonte, dividindo o mar e o céu, e o tecido cinza listrou-se de grossas pulsações, uma após outra, sob a superfície, seguindo uma a outra, perseguindo uma a outra, perpetuamente.

Em seguida, surgem seis “Eus”, seis vozes e as formas, e não os sentidos, que eles imprimem no mundo. No entanto, a distinção entre Interlúdios e Monólogos não tarda a se tornar muito nebulosa uma vez que ocorre uma pulverização de enunciados que seriam característicos dos Interlúdios no interior dos Monólogos. Esses enunciados, unidades poéticas mínimas, irrompem e interrompem a digressão das personagens.
Ao contrário do crítico Alex Zwerdling para quem na ficção de Woolf importam mais as impressões desordenadas do que o pensamento sistemático (Cf.: ZWERDLING, 1986, p.10-12), a lingüista e tradutora de Milner Ann Banfield quer apreender a estrutura lógica e universal subjacente à impressão vaga e ao pessoal. Para Banfield o moderno reside na apresentação de um mundo visto sem eu. Em outras palavras, a forma impessoal, como êxito e traço mais moderno e mais woolfiano em Woolf, implica a exclusão do pronome de primeira pessoa.
Para Banfield o pronome de primeira pessoa é impertinente para designar o sujeito moderno, pois o “eu” pode remeter a traços de estabilidade referencial. Enfatizando estabilidade, cita um trecho de W: “'I have signed my name already twenty times. I, and again I, and again I.' (Woolf, 1931, p.167)” (BANFIELD, 2001, p. 250) Em contrapartida, no pronome de terceira pessoa, localiza a liberdade referencial procurada, isto é, diferentemente do pronome de primeira pessoa, o pronome de terceira pessoa pode mudar de referência no interior do discurso.
Na narrativa literária, elementos de expressão de subjetividade se desligam da noção de falante - enquanto presença; e o ponto de vista, desconectado do pronome de primeira pessoa, pode ser representado pelo pronome de terceira pessoa. Assim se configura o que lingüistas e críticos literários vêm chamando de discurso/estilo indireto livre ou, nos termos de Banfield que ampliou o escopo da denominação de Jespersen “represented speech”, “represented speech and thought”. E é no romance moderno, através do uso da terceira pessoa e do discurso indireto livre, que tal nomeação para o sujeito moderno encontra expressão privilegiada. O foco das análises de Banfield, então, recai sobre To the lighthouse, 1927, de Virginia Woolf.
Dessas análises de To the lighthouse apreende-se a distinção fundamental apontada por Banfield em que os Interlúdios são impessoais e universais e os Monólogos pessoais e singulares. Essa distinção, em The waves, torna-se profundamente nebulosa. À primeira vista, pode-se juntar à distinção de Banfield outros elementos que distinguem os Interlúdios dos Monólogos: os Interlúdios seriam mais poéticos e os Monólogos mais digressivos, prosaicos; os Interlúdios são separados dos Monólogos por um espaço em branco; os Monólogos trazem as marcas do nome próprio e do recurso parentético: “said Bernard”, “said Rhoda”, e assim por diante.
No entanto, a linha que separa Interlúdios e Monólogos não tarda a se tornar tênue uma vez que ocorre uma pulverização de enunciados que seriam característicos dos interlúdios no interior dos Monólogos. Esses enunciados, unidades poéticas mínimas, escandem a digressão das personagens. Neste momento, entendo escansão como a intrusão de um elemento outro que tem como efeito a dispersão.
Eis um trecho de um dos Monólogos, a voz é de Louis:
(1) Cada flor é uma pequena nódoa nos verdes profundos. (2) As pétalas são arlequins. (3) Caules erguem-se das cavidades negras. (4) Flores bóiam como peixes de luz nas águas escuras e verdes. (5) Pego um caule na mão. (6) Sou o caule. (7) Minhas raízes descem às profundezas do mundo, varando a terra seca e a terra úmida, atravessando veios de chumbo e prata. (8) Sou todo fibras. (9) Tremores sacodem-me, o peso da terra pressiona minhas costelas. (10) Aqui em cima meus olhos são verdes folhas cegas. (11) Sou um menino em calças de flanela cinza, o cinto preso por uma serpente de latão.

Os enunciados de 1 a 4 não diferem daqueles que pertencem aos Interlúdios. Em 5, tem-se a entrada do Eu/I que segura um caule/stalk. Em 6, o caule que em 5 era objeto direto aparece como predicativo do sujeito. Passa-se de “Pego um caule na mão” para “Sou o caule”, e, por paralelismo, o caule ao passar de objeto direto para predicativo arrasta o sujeito para a posição anterior de objeto.
Assim, quando Louis diz “Eu sou o caule”, pode-se ler aí uma tentativa de representação subjetiva. No entanto, o que ocorre é que aquilo que é proveniente do Interlúdio impessoal mais do que identificar o Eu ao seu atributo, lança-o numa posição de objeto. Em outras palavras, o Eu dos Monólogos se figura e se volatiliza em significantes provenientes dos Interlúdios - Isso sem Eu. A sombra do Isso através de suas imagens recai sobre um Eu que se apresenta numa posição de objeto: um caule. Mais ainda: os Interlúdios se revelam quadros que olham, como se fossem um puro olhar que transforma o Eu em puro objeto olhado, tragado pelo quadro, confundido com a paisagem do Interlúdio em que não há ninguém que diz ou olha. Pura voz e puro olhar.
A imagem do caule remete sim à cena do Interlúdio, mas o que ela substitui, o que ela condensa? Pode-se supor que o caule é matéfora para a fixação. Contudo, não penso que a organização estrutural em que esse significante se encontra autorize tal atribuição de sentido, tal tradução. Ele é apenas imagem poética que empresta uma forma e nada mais ao Eu. Enunciado que não autoriza quem enuncia hesitar ou duvidar: a voz diz “Eu sou o caule” e não “Eu penso que sou o caule”. O pensar criaria um intervalo que não há.
A irrupção dos Interlúdios nos Monólogos é justamente um fator forte que impede o Eu de se fixar. É aquilo que lhe empresta o papel de shifter. Logo, propor uma relação diferente daquela configurada por Banfield para os Interlúdios e os Monólogos dá a ver o funcionamento da primeira pessoa sob o efeito da dispersão.
De forma notável e intrigante, a dispersão em W se dá através de imagens poéticas. Cito agora um trecho do Monólogo de Rhoda:

“O que digo é perpetuamente contestado.A cada vez que a porta se abre, sou interrompida. Ainda não tenho vinte e um anos. Serei aniquilada. Vão rir de mim por toda minha vida. Como um rolha em mar revolto, serei jogada para cima e para baixo, entre esses homens e mulheres com rostos repuxados, línguas mentirosas. A cada vez que a porta se abre, adejo longe, como um talo de erva. (1) A onda quebra. (2) Sou a espuma que varre e enche de brancura as fendas mais remotas das rochas; (3) sou também uma jovem, aqui nesta sala. (Woolf 1980, p. 81)

Nestes enunciados, localizo três imagens. A primeira imagem é a onda que quebra, irrupção clara daquilo que é próprio dos interlúdios no interior dos Monólogos. A segunda imagem é a metamorfose da personagem Rhoda em espuma. A terceira imagem é a presença localizada da menina na sala: “here”, “in this room”. A terceira imagem é uma tentativa do eu se fixar. E seria um erro localizar na imagem da espuma, em 2, a evanescência: essa seria a via de associação de sentidos. A evanescência é antes o movimento, a passagem de uma imagem à outra. No caso, movimento entre a imagem da espuma e a imagem da menina na sala, aí, nesse lugar preciso. Ou ainda, nem uma imagem, nem outra, separadas, mas sim as duas coexistindo na primeira pessoa que não se fixa.
A imagem é aquilo que figura, que fixa, não seria então contraditório propô-la como lugar de acesso à evanescência, à dispersão?
As imagens poéticas de The waves asseguram uma resposta negativa. Assim como estou propondo que a presença do Eu instancia a dispersão, proponho que a imagem poética pode veicular a dispersão. Neste ponto é impossível não lembrar a décima nona lição do Seminário VII de Lacan, L' éthique de la psychanalyse, 1959-1960, a saber: “L'éclat d'Antigone”. Nessa lição encantadora Lacan se indaga sobre o fascínio da imagem de Antígona, mais precisamente destaca “o poder dissipante desta imagem central”. De onde vem esse brilho insuportável? Ele vem do fato de que a imagem de Antígona dá a ver o desejo como puro desejo, isto é, como desejo de morte.
Lacan articula o desejo radical, destruição absoluta, ao campo do belo que não se desvincula dessa imagem deslumbrante:

A verdadeira barreira que detém o sujeito diante do campo inominável do desejo radical uma vez que é o campo a destruição absoluta, da destruição para além da putrefação, é o fenômeno estético propriamente dito uma vez que é identificável com a experiência do belo – o belo em seu brilho resplandecente, esse belo do qual disseram que é o esplendor da verdade. (Lacan 1988, p. 265)

A palavra “éclat”, insistentemente usada por Lacan e, por ele, indissociada do belo, além de significar brilho, também significa estouro, fragmento, estilhaço. Na prosa poética de Woolf, quando se salta da cama e se abre a janela:

[...] que sussuro de pássaros a alçarem vôo! Sabe esse súbito fremir de asas, esse clamor, gorgeio, confusão; o tumulto e o balbucio de vozes; e todas as gotas cintilam, tremulam, como se o jardim fosse um mosaico estilhaçado, evanescente, cintilante; ainda não conformado em uma unidade; e um pássaro canta perto da janela. Ouvi esses cantos. Segui esses fantasmas. (Woolf 1980, p. 184)

[...] with what a whirr the birds raise! You know that sudden rush of wings, that exclamation, carol, and confusion; the riot and babble of voices; and all the drops are sparkling, trembling, as if the garden were a splintered mosaic, vanishing, twinkling; not yet formed into one whole; and a bird sings close to the window. I heard those songs. I followed those phantoms.” (W, 247)

Essa imagem de quem desperta, abre a janela, escuta o mover das asas dos pássaros e vê esse jardim evanescente condensa a poesia dessas canções ouvidas - na repetição do fonema [w], captando asas em movimento - e desses fantasmas - splintered, vanishing, twinkling - que são seguidos para que através deles se vislumbre o desejo, a morte. Assim, este mosaico estilhaçado que é The waves tem como elementos estruturais som, imagem e beleza. Elementos que são a barra e o acesso à dispersão que conduzirá a escrita até seus últimos enunciados: “I strike spurs into my horse. Against you I will fling myself, unvanquished and unyelding, O Death! The waves broke on the shore.”(W, 297) (Em itálico no texto)
Se o “éclat” da imagem de Antígona me levou ao mosaico estilhaçado, é preciso apontar a diferença que existe entre as duas imagens em foco: aquela presentificada no “I am the foam” e aquela presentificada no “splintered mosaic”. A primeira seria um metáfora literal, uma espécie de nome próprio, por isso a impertinência de atribuir ao significante espuma o sentido de evanescência. A segunda seria uma metáfora viva que substitui, condensa, desperta o campo das significações, por isso metaforiza-se nela a própria estrutura do texto.
Em W, pode-se pensar tais Interlúdios não só como prosa poética, mas também como quadros impessoais ou cenas sem Eu. O interessante é que as imagens desses quadros são tomados pelas vozes como veículo de representação subjetiva. Mas de uma forma muito peculiar, pois o Eu da personagem ou a voz não se transforma em espectador do quadro ou da cena furtada ao interlúdio, mas no próprio quadro ou no objeto visto. Não é à toa que Lacan insiste que “no campo escópico, o olhar está do lado de fora, sou olhado, quer dizer, sou quadro.”(LACAN,1998, p. 104).
Trazer à tona a relação entre os Interlúdios e os Monólogos permite delinear o lugar que o Eu ocupa no texto de The waves. Ao contrário da fixação enfatizada nas leituras de Banfield, apontei para a evanescência que o Eu veicula através de um movimento constante entre uma tentativa de figuração através das imagens dos Interlúdios e de se fixar através dos dêiticos e da digressão. Movimento que veicula a dispersão do Eu. Apontei também que tal tentativa de metaforização - “I am the foam”, “I am the stalk” - fracassa uma vez que não pode ser traduzida, não produz significações, ou seja, ser espuma ou ser caule tem aí uma função de nome próprio. Certamente, a espuma e o caule são metáforas mortas, literais.
Assim, a estrutura fragmentária de The waves pode ser pensada em vários níveis. Como descontinuidade entre os Interlúdios e os Monólogos, como descontinuidades entre os seis Monólogos, como irrupção do poético no prosaico e seu efeito de dispersão. Mas, ao mesmo tempo, a irrupção e a repetição dessas unidades poéticas mínimas próprias aos Interlúdios podem ser pensadas como figuração do anel de poesia que a própria obra busca – “in efforts to make a steel ring of clear poetry that shall connect the gulls and the woman with bad teeth, the church spire and the bobbing billycock hats [...]” (W, 128).
A unidade seria criada através de palavras que são tomadas como produtoras de movimento e não como produtoras de sentidos: “Words crowd and cluster and push forth one on top of another. It does not matter which. They jostle and mount on each other’s shoulders. The single and the solitary mate, tumble and become many. It does not matter what I say.” (W, 104). Este fragmento ilumina e é iluminado por aquele que traz à baila o mosaico estilhaçado como metáfora para o próprio texto de The waves. O estilhaçamento se dá através de sons que repercutem, ecoam, colidem, ressoam (Cf.: DE LEMOS. Joyce com Lacan, Joyce mais Lacan, Joyce-Lacan. Em preparação.). Esse movimento entre as palavras de juntar-se, grudar-se, atropelar-se, empurrar-se e trepar, acaba por não deixar intacta a palavra como unidade (Cf.: DE LEMOS. Joyce com Lacan, Joyce mais Lacan, Joyce-Lacan. Em preparação.).
A dispersão dos fragmentos poéticos acabaria por criar um efeito de unidade justamente através desses fragmentos sonoros que repercutem, ecoam, colidem. Anel de poesia ou mosaico estilhaçado, de fato.
Conforme disse anteriormente e agora reitero introduzindo um outro argumento, a metáfora do mosaico estilhaçado e outras com a mesma função produzem uma figuração para a estrutura da obra. No entanto, essas metáforas não têm força simbólica para organizar o texto. Não são as metáforas que produzem efeito de conjunto, são os fragmentos dos Interlúdios dispersos nos Monólogos que produzem um efeito se não de unidade ao menos de continuidade do fluxo. Os significantes provenientes dos Interlúdios se repetem, criam imagens, figuram, mas não propriamente produzem sentidos, ao contrário, eles irrompem e interrompem a tentiva de compreensão e digressão própria às perspectivas. Ondas, jardins, flores, pássaros, espumas e caules criam desenlaces.
Em The waves, corte e dispersão não se desligam do fato do ato criativo ser dramatizado pela própria escrita literária. A palavra incontornável e sonorizada proveniente dos Interlúdios dita o funcionamento dos Monólogos. Os efeitos dispersivo e poético condenam o escritor Bernard a passar e a retornar a essa torrente de destroços - sons inarticulados - que é o Real.
Entretanto, não existe apenas o fluxo, existem tanto a distinção quanto a tentativa de representação. Há estilhaçamento e mosaico. Penso essa heterogeneidade, o “mosaico estilhaçado”, em três registros: 1) no Registro indistinto-estilhaçado, a tentativa de identificação fracassa, instaura-se a ordem do ser, tal qual Narciso, a voz faz “Um” com a imagem do Interlúdio; 2) no Registro vazio-divisão o Eu designa um lugar vazio, é este Registro que garante a ressonância entre os três; 3) no Registro-sólido, o eu, em The waves, busca, através da digressão, organizar suas identificações (tal qual G.H. tenta fixar pontos de referência).
Em The waves, o Eu ao designar um vazio nos Interlúdios funda uma série de identificações. Porém não se pode dizer que tal como em PSGH exista um traço, que agora nomeio “não-sou-a-barata”, organizador das identificações. Talvez seja a ausência desse traço negativo que impulsione as vozes a jogarem com sua própria morte. Ao dizer “I am the foam” ou “I am the stalk” irrompe o Registro indistinto-estilhaçado.
Isso posto, é preciso sondar a questão da morte em relação a Bernard, o escritor, que retorna do reino dos mortos com a seguinte pergunta: “So the landscape returned to me; so I saw fields rolling in waves of colour beneath me, but now the difference; I saw but was not seen. [...] But how describe the world seen without a self?” (WOOLF 1931, p. 286) Bernard, contudo, não transforma a pergunta numa busca deliberada como a de G.H., a leitura retroativa de The waves permite dizer que a resposta ou o achado – “o mundo visto sem eu” - são os Interlúdios, em que não existe nenhum Eu.
Conforme nos lembra Rosalind Krauss, em seu The optical unconscious, Roger Fry, pintor e crítico, cuja biógrafa é Virginia Woolf, pensava o artista como “puro doador de forma”, como “olho sem corpo” (KRAUSS 1994, p. 139). Tanto para a pintora de To the lighthouse, quanto para o escritor de The waves, o esvaziamento é condição para a criação artística: “Always (it was in her nature, or in her sex, she did not know which) before she exchanged the fluidity of life for the concentration of painting she had a few moments of nakedness when she seemed like an unborn soul, a soul reft of body, [...] Certainly she was losing conciousness of outer things, and her name and her personality and her appearance, [...].” (WOOLF 1927, p. 158-159) Assim, o artista perde a perspectiva pessoal, que era proveniente do Registro-sólido, e se torna, no entrelaçamento entre o Registro-vazio e o estilhaçado, um puro olhar doador de forma.
Penso que a ênfase no esvaziamento, em To the lighthouse, implica no apagamento da identidade pessoal do artista, mas não que ele, o artista, necessariamente se experimente como morto. Em The waves, as cadeias que se entrecruzam em torno do “mundo visto sem eu” permitem enfatizar o abraço com a morte, de fato, Bernard é o “puro doador de forma”, EU que não existe nos Interlúdios, e é também um homem morto, que se confunde com o fundo (furo!) de onde tentava se distinguir.
No último Monólogo, cinco pontos de vista se apagam e, apesar da escuridão, resta a voz do escritor Bernard que, à moda de G.H., diz: “Now to sum up. Now to explain to you the meaning of my life. [...] The illusion is upon me that something adheres for a moment, has roundness, weight, depth, is completed.” (WOOLF 1931, p. 238) Essa ilusão de solidez, de completude e de sucessão insere-se no Registro-sólido (“Let us pretend that life is a solid substance, [...], that we can make out a plain and logical story”) que se apresenta através da repetição de alguns enunciados, são eles: “the identity becomes robust”; “Life is pleasant, life is good”; “After Monday, Tuesday comes.”
Nesse Registro, através do que chama “personalidade dos meus amigos”, Bernard tenta distinguir-se dos amigos e os amigos uns dos outros. Louis é aquele que não se apega como os outros se apegam. Neville é o leitor do autores latinos. Rhoda é selvagem e nunca se podia agarrar. Susan é feminina. Jinny é caracterizada através de alguns gestos. Bernard é quem acreditara: “that we marry, that we domesticate”. Existe ainda Percival, o morto. Dessa perda, Bernard diz: “What is startling, what is unexpected, what we cannot account for, what turns symmetry to nonsense.” E mais uma vez a tentativa de continuidade é interrompida pelo inesperado e sem sentido.
O Registro sólido, que remete à completude e à identidade fixa, é o tempo todo cortado pelo Registro-indistinto-estilhaçado. Neste Registro, Bernard é múltiplo, tem vários nomes próprios, é morto, é “eus não nascidos” (“unborn selves”). “Who am I?”, é a pergunta que dispersa. O “Who am I?”, no Registro indistinto-estilhaçado, ressoa como “Who were we?”. Neste momento, é preciso deixar que o próprio Bernard enuncie tal dispersão:

[...] - I could not recover myself from that dissipation. [...] Was this then, this streaming away mixed with Susan, Jinny, Neville, Rhoda, Louis, a sort of death? A new assembly of elements? Some hint of what was to come? (WOOLF, 1931, p. 279)

Who am I? I have been talking of Bernard, Neville, Jinny, Susan, Rhoda and Louis. Am I all of them? Am I one and distinct? I do not know. We sat here together. But now Percival is dead, and Rhoda is dead; we are divided; we are not here. Yet I cannot find any obstacle separating us. There is no division between me and them. As I talked I felt, 'I am you'. This difference we make so much of, this identity we so feverishly cherish, was overcome. [...] My eyes fill with Susan's tears. I see far away, quivering like a gold thread, the pillar Rhoda saw, and feel the rush of the wind of her flight when she leapt. (WOOLF, 1931, p. 289)

A indistinção se dá através da multiplicação daquilo que a princípio serve como traço distintivo: os nomes próprios. O “I am you” do último fragmento leva a pensar que Bernard é Rhoda, a espuma, que Bernard é Louis, o caule; e, também como veremos a seguir, que ele é a própria morte. No entanto, as posições de enunciação e os lugares na cadeia em que se inserem “I am you”, “I am the foam”, “I am the stalk”, não autorizam dizer que Bernard experiencia do mesmo modo a posição de objeto que experienciam Rhoda e Louis. Qual a diferença?
Retornemos ao antepenúltimo enunciado: “Against you I will fling myself, unvanquished and unyielding, O Death!” (WOOLF 1931,p. 297) Esse enunciado traz para a discussão a segunda pessoa do discurso, nele ainda se pode precisar que Bernard dirige-se à morte, em outros momentos não é possível recuperar a referência para o “you”, que resta indeterminado: 1) Bernard começa o último Monólogo dirigindo-se a uma segunda pessoa que não se sabe quem - “Now to explain to you the meaning of my life”; 2) Bernard atribui a essa segunda pessoa indeterminada na expressão idiomática um saber sobre esse ruidoso mosaico estilhaçado: “You know that sudden rush of wings, [...]” 3) quando as distinções são anuladas, Bernard sentiu (felt) que: “I am you”. (Eu sublinho) Nesse último enunciado, por paralelismo, pode-se ouvir ressoando: I am you, I am the foam, I am the stalk, I am the dead.
Nessa ressonância, o Eu padece por ser também objeto desse Outro, ou seja, torna-se receptáculo das palavras-sonorizadas vindas dos Interlúdios: foam, stalk. Eu passivo, “receptor do choque”: “I only know that many of these exceptional moments brought with them a peculiar horror and a physical collapse; they seemed dominant; myself passive.” (WOOLF 1985, p. 71-72) Em receptáculo soa “réceptacle” e ressoa a “passividade sem limite” da esponja – “Éponge” - absorvendo e expelindo a Coisa. (DERRIDA 1988, p.56)
Penso que Bernard é uma subjetividade estilhaçada, submersa no fluxo, aquela que não consegue criar histórias, que vê suas frases interrompidas, que grita e geme, quase late, pronuncia sílabas de crianças (cujo aparecimento se daria nas aliterações, na sonoridade ritmada do texto); porém sua subjetividade é diferente da de Rhoda ou da de Louis porque não é somente o “receptor passivo do choque” é também o escritor, o “puro doador de forma”. O mosaico é produto da tentativa de criar frases, uma sintaxe, imagens e cenas que se tornam, a um só tempo, barreiras e passagens para a morte que dispersa e cintila. Estilhaça. E o Registro-sólido não tem peso suficiente para ancoragens referenciais e nem para impedir que se tenha em The waves “frases fantasmas”, nomeação woolfiana para aquilo que Francis Ponge nomeia “poesia ativa” (Cf.: PONGE 1970, p. 25).
O escritor de The waves, diante do buraco e da escuridão deixados pela Coisa, mostra que escrevê-la é cifrá-la na imagem poética e quebrá-la no som. Onde o Eu se dissipa, o Isso advém. O mosaico permanece estilhaçado, às escuras. Repetindo o “Eu sou o caule” de Louis, Bernard parece dizer: “Eu sou a escrita.” O que remete ao “esteticismo” que Harold Bloom aponta como diferencial em Virginia Woolf (Cf.: BLOOM, 2001). Esse ser-fazer-obra nas palavras de Virginia Woolf:

o mundo é uma obra de arte; nós somos partes dessa obra de arte. Hamlet ou um quarteto de Beethoven é a verdade sobre essa massa vasta que chamanos de mundo. Contudo não existe Shakespeare, não existe Beethoven; certamente não existe Deus; nós somos as palavras; nós somos a música; nós somos a própria coisa. E eu vejo isso quando levo um choque.


4) James Joyce e Virginia Woolf: letra e corporalidade sonora
A voz de Bernard, o escritor de The waves, já afirmara: “the rhythm is the main thing in writing.” (W, 79) (grifos meus) Enunciado, ele próprio, ritmado através do eco do acento na primeira sílaba de “rhythm” na primeira sílaba de “writing”. Neste momento, já se pode afirmar que a dispersão e o ritmo d'as Ondas apagam as marcas características da narrativa tradicional, a saber: o enredo, a cronologia, as relações lineares de causa e efeito e, principalmente, a categoria de personagem. Despidos dos traços de identidades que lhe daria um rosto, Louis, Neville, Susan, Jinny e Rhoda reduzem-se a vozes orquestradas pelo escritor Bernard. Escrita e música se entrelaçam para fazer retornar o corpo sonoro da palavra.
A dispersão e o ritmo impedem a operação retroativa de basteamento que produziria a significação. O efeito dispersivo confina as vozes a uma posição de objeto, conforme vimos, pura voz e puro olhar. Contudo essa vigência de lalíngua não impediu Sérgio Laia de afirmar que tanto em To the lighthouse quanto em The waves o fluxo joyciano encontra-se recalcado. Citarei a bela formulação de Sérgio Laia:

Quando nos deixamos guiar, pela pensa da escritora, nesse caminho Rumo ao farol que ela cartografou no “espaço literário”, quando As ondas começam a invadir nossos olhos, verificamos, sem dúvida, a instância do auto-engendramento de uma “identidade textual” chamada Virginia Woolf. Mas, como não escutarmos, também, em um outro tom e, por exemplo, nesses livros a voz de Joyce? Ela ecoa por esse litoral onde as ondas se desmancham para se formarem, de novo, no mais alto mar, iluminadas pelo farol woolfiano. E, então, na delicadeza tão peculiar e, por que não dizer, tão sinthomática a Virginia Woolf, o fluxo joyceano, em uma sofisticada reverberação, conhece esse destino que, perseverando no meu deslocamento a partir de Freud, poderíamos nomear recalcamento.” (Laia, p. 284)

É evidente que Virginia Woolf não desmonta nem a sintaxe nem a palavra inglesa como o fez James Joyce, mas será que podemos dizer, com Laia, que o fluxo joyciano está recalcado em Virginia Woolf? Será que o farol seria ponto de ancoragem e as ondas apenas metáfora para o movimento incessante de criação e destruição? Será que o fluxo sonoro e a música imposta a Virginia Woolf podem ser situados apenas como corporeidade sonora e não como vigência da letra? Onde está Virginia Woolf? Do lado de “A carta roubada”, nos Escritos, ou na “Lituraterra”, de Outros escritos? Do lado do significante ou do lado de lalíngua? Onde está Virginia Woolf? É possível situá-la? Ou é ela lugar de encontro de impossíveis heterogeneidades tal como esse encontro entre literatura e psicanálise? Que tenhamos ensaiado essa transmissão impossível e necessária do real.
Muito obrigada.

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