02 março 2010

O infantil e o inconsciente, ou o infantil é o inconsciente

O infantil e o inconsciente, ou o infantil é o inconsciente Juliana Augusta Soares

O conceito de infantil, em psicanálise, deve ser investigado em sua conexão com o que Lacan considerou como o mais “verdadeiramente próprio” à psicanálise: o inconsciente (Ferretti, 2000).
Para tanto, vou me voltar para um artigo de 1915 de Freud intitulado “O Inconsciente”, no qual o autor apresenta sua justificação para o conceito de inconsciente, identificando as características próprias ao inconsciente e diferenciando-o da consciência.
Procurando rebater as críticas e as contestações em torno da hipótese do inconsciente, Freud inicia o artigo dizendo que supor a existência de algo mental inconsciente é tanto necessário quanto legítimo.
Necessário porque os dados da consciência apresentam um número muito grande de lacunas. Há, por exemplo, atos psíquicos, tais como os atos falhos e os sonhos que só podem ser explicados pela pressuposição de outros atos. Portanto, é nas lacunas das manifestações conscientes que temos de procurar o caminho do inconsciente. E, legítimo, porque ao postulá-lo não se afasta do habitual e geralmente aceito modo de pensar.
Segundo Freud (op. cit.), a objeção normalmente imposta à hipótese do inconsciente deriva da equivalência, considerada axiomática, entre o consciente e o mental e propõe empregar as palavras consciente e inconsciente num sentido sistemático, o que significa a inclusão em sistemas particulares e a posse de certas características. Significa, ainda, que essa outra ordem – a do inconsciente – não é apenas topograficamente distinta da consciência, mas é formalmente diferente desta, embora igualmente inteligível.
Em geral, um ato psíquico passa por duas fases entre as quais se interpõe uma espécie de teste ou censura. Na primeira fase, o ato psíquico é inconsciente e pertence ao sistema inconsciente (Ics.); se for rejeitado pela censura, não terá permissão para passar à segunda fase; diz-se então que foi recalcado, devendo permanecer inconsciente. Se, porém, não for freado pela censura, entrará na segunda fase, passando a pertencer ao sistema Consciente (Cs.). “Mas o fato de pertencer a esse sistema ainda não determina de modo inequívoco sua relação com a consciência. Ainda não é consciente, embora, certamente, seja capaz de se tornar consciente (...)”. (Freud, 1915, p. 178, grifos do autor).
Freud apresenta, então, as características especiais do sistema inconsciente, a saber:
• O núcleo do inconsciente consiste em impulsos carregados de desejo, os quais estão isentos de contradição mútua, ou seja, o princípio da não-contradição não funciona no nível do sistema inconsciente (no caso dos sonhos, por exemplo, as representações opostas são preferencialmente expressas por um único elemento);
• Não há lugar para negação (o inconsciente não diz ‘não’), dúvida (o “ou... ou” empregado no relato do sonho deve ser traduzido por “e”) ou quaisquer graus de certeza;
• O processo de associação de idéias é muito mais móvel, sendo regido pelos processos de deslocamento e condensação (o que Freud denomina de processo psíquico primário, em contraposição ao processo psíquico secundário característico do sistema Consciente);
• Os processos do sistema inconsciente são atemporais, isto é, não são ordenados temporalmente, nem sofrem a ação desgastante do tempo;
• Os processos inconscientes dispensam pouca atenção à realidade e estão sujeitos ao princípio do prazer, ou em outras palavras, há a substituição da realidade externa pela realidade psíquica;
• Tais processos se tornam cognoscíveis sobretudo sob as condições de sonho e neurose.

No capítulo VII de A interpretação dos sonhos, Freud (1900-1901) nos fala do determinismo nos fatos psíquicos (na realidade, de uma sobredeterminação), dizendo claramente que não há neles nada de arbitrário e se propõe a descrever, então, as leis que regem o sistema inconsciente, deixando claro que o que descreve não é a mesma coisa que o inconsciente dos filósofos. Para Freud, o inconsciente é o psíquico, e mais, é irredutível à consciência.


A esse respeito Garcia-Roza (2004) comenta:

O termo “inconsciente”, quando empregado antes de Freud, o era de uma forma puramente adjetiva para designar aquilo que não era consciente, mas jamais para designar um sistema psíquico distinto dos demais e dotado de atividade própria. (...). Um outro aspecto importante a ser ressaltado é o da identificação do inconsciente com o caos, o mistério, o inefável, o ilógico etc., e esta identificação ocorreu tanto anteriormente a Freud como no interior do próprio espaço do saber psicanalítico. (pp. 169-170).

As principais leis que regem o inconsciente são, segundo Freud, a condensação e o deslocamento e Lacan, seguindo o lingüista Roman Jakobson, vai interpretá-los como análogos às figuras lingüísticas da metáfora e da metonímia, respectivamente.
Voltando-se para o simbolismo presente nos sonhos, Freud (op. cit.) destaca que o simbolismo onírico não é uma característica peculiar aos sonhos, mas exerce uma influência dominante similar sobre a representação nos contos de fadas, nos mitos e lendas, nos chistes e no folclore. “(...) com toda a probabilidade, ele [o simbolismo onírico] é uma característica do pensar inconsciente que fornece ao trabalho do sonho o material para a condensação, o deslocamento e a dramatização”. (p. 699, grifo meu).
Outro ponto importante a ser destacado é que tanto a condensação quanto o deslocamento são características invariáveis não só do trabalho dos sonhos, mas também dos sintomas e das demais formações do inconsciente, os quais para burlar o recalque (a censura) se disfarçam.
A partir do estabelecimento do conceito de recalcamento e de sua relação com a distorção no sonho, Freud (id.) expressa a principal descoberta a que foi levado pela análise dos sonhos: os sonhos são realizações disfarçadas de desejos recalcados.

Esses desejos de nosso inconsciente, sempre em estado de alerta e, por assim dizer, imortais, fazem lembrar os legendários Titãs (...). Mas esses desejos, mantidos sob recalcamento, são eles próprios de origem infantil, como nos ensina a pesquisa psicológica das neuroses. (...) o desejo que é representado num sonho tem de ser um desejo infantil. (p. 583).

Mais um passo é dado para dizer que, em acréscimo à formula anterior, os sonhos
são realizações disfarçadas de desejos infantis recalcados. Assim como as demais formações do inconsciente (sintomas, chistes, atos falhos, esquecimentos). O que está sob recalque, então? O infantil.
Freud afirma (1915): “(...) Se existem no ser humano formações mentais herdadas (...), elas constituem o núcleo do inconsciente. Depois, junta-se a elas o que foi descartado durante o desenvolvimento da infância como sendo inútil (...)”. (p. 200, grifo meu). Inútil é justamente um dos nomes do gozo para Lacan.
Essas últimas considerações apontam para a relação do inconsciente com o infantil, assim como a que se segue, extraído do artigo “Notas sobre um caso de neurose obsessiva”, de 1909.
Observei que, aqui, ele [o paciente de Freud, conhecido como “Homem dos Ratos”] havia incidentalmente atingido uma das principais características do inconsciente, ou seja, a relação deste com o infantil. O inconsciente, expliquei, era o infantil; era aquela parte do eu que ficara apartada dele na infância, que não participara dos estádios posteriores do seu desenvolvimento e que, em conseqüência, se tornara reprimida. (p. 158, grifo meu).

Mas se o inconsciente é o infantil, de modo algum significa que seja o primitivo.
Segundo Lacan (1965-1966), manter o conceito de primitivo, “falseará tudo do processo primário, assim como a criança representará o subdesenvolvido, o que irá mascarar a verdade do que se passa de original durante a infância”. (p. 873).
Merece destaque, ainda, a característica de atemporalidade do inconsciente, uma vez que tal característica interessa mais de perto à questão do infantil.
Se o inconsciente não conhece tempo, em que ele se apóia? Partindo de referências freudianas e guiando-se por Lacan, Ferretti (2000) afirma que o ponto de apoio do inconsciente é a identificação, a qual remete à constituição dialética do sujeito com um outro humano, marca da alienação em uma imagem especular, marca infantil.
A atemporalidade do inconsciente também permite incluir uma temporalidade na constituição do sujeito, qual seja, a retroativa. O passado, não se volta cronologicamente a ele, mas há uma reformulação ou ratificação dele, o que sem dúvida abre um caminho e um sentido para a intervenção psicanalítica.
Retomando as duas descobertas freudianas capitais – a marca da sexualidade presente desde a infância e o infantil como resto desta mesma infância (sexual) –, Lajonquière (2004) ressalta que a genialidade de Freud aninha-se justamente em aliar o sexual e o infantil ao falar do desejo inconsciente. Isso porque “se o desejo fosse tão-só sexual, a psicanálise bem poderia ser mais uma sexologia de nossos dias. Já, se fosse tão-só infantil, ela poderia ser reduzida a uma psicologia do desenvolvimento. (...). A conjunção [“e”] impõe uma determinação recíproca. O desejo só é freudiano porque é tanto sexual quanto infantil; mais ainda, é por isso mesmo que o desejo é recalcado”. (p. 10).
Partindo de uma leitura lacaniana, o autor vai dizer que o que resta do encontro de uma criança com o adulto, em parte, inscreve-se psiquicamente como desejo ou, em outras palavras, como aquilo que passa a fazer falta – diferença – no mundo sempre adulto. Outra parte desse mesmo (des)encontro precipita-se sob a forma de gozo ou, simplesmente, como o infantil: isso que não pára de trabalhar, de se repetir, de voltar a pedir...
O infantil, continua Lajonquière (op. cit.), é a marca de uma posição original, primordial, porém não primitiva: a de nada querer saber sobre a falta de proporção entre os sexos ou, em outras palavras, sobre a castração.
Para entendermos um pouco melhor o que, para a psicanálise, está em jogo na castração será necessário remeter, embora brevemente, ao Complexo de Édipo tal como concebido por Lacan (1957-1958), uma vez que, seguindo as indicações dadas pelo psicanalista lacaniano Marie-Jean Sauret (1998), é no modo como o sujeito responde ao Édipo que encontramos, estruturalmente, o infantil. Em outras palavras, o Édipo é o pano de fundo do infantil.
Lacan (op. cit.) é incisivo quanto ao Édipo: “o que o inconsciente revela, no princípio, é, acima de tudo, o complexo de Édipo” (p. 167) e propõe abordá-lo a partir de três tempos lógicos.
1º) Em um primeiro tempo, a criança se identifica especularmente com aquilo que é o objeto de desejo da mãe, ou seja, com o que falta à mãe para completá-la. Isso porque o desejo da criança é, nesse momento, o desejo do desejo da mãe, ou seja, a criança deseja tanto ser desejada pela mãe, como tomar o desejo da mãe como se fora o próprio. Em uma palavra, a criança deseja ser tudo para a mãe, convertendo-se naquilo que supõe ser o objeto do desejo da mãe. O que é que determina que a criança deseje ser o objeto do desejo da mãe? Não é a dependência vital, mas a dependência de amor (Bleichmar, 1984).
No entanto, cedo a criança se dá conta que o desejo da mãe comporta um para-além. A criança não basta à mãe. E o que está para-além? De acordo com a psicanálise, o falo, ou seja, o significante do desejo. Se o que falta à mãe é o falo, a criança se esforça para ser o falo da mãe, ficando à mercê de seu desejo.
Este primeiro tempo do Édipo está profundamente articulado ao que Lacan postulou como “estádio de espelho”. É o tempo lógico da alienação, a qual está marcadamente presente na constituição subjetiva do sujeito, de acordo com a psicanálise, mas que não deixa de se repetir e se atualizar ao longo da vida do sujeito, sobretudo nas relações imaginárias com os semelhantes. Se o “eu” se forma na imagem do outro e percebe o seu desejo no outro, tal qual Lacan enuncia no estádio de espelho, é possível entrever o estabelecimento de uma tensão, cerne do surgimento da agressividade: é preciso destruir esse outro que é o mesmo, destruir aquele que representa a sede da alienação. Nessa relação dual, imaginária e especular não há espaço para a subjetivação: “o sujeito não se reconhece ali, porque está apenas capturado ali” (Nasio, 1997).
Os tempos seguintes (segundo e terceiro tempo do Édipo) estão relacionados ao tempo lógico da separação. Talvez possa dizer que, no segundo tempo do Édipo, a separação é anunciada, para se concretizar apenas no terceiro tempo.
2º) Em um segundo tempo surge, no discurso da mãe, o pai. “O que constitui seu caráter decisivo deve ser isolado como relação [da mãe] não com o pai, mas com a palavra do pai”. (Lacan, 1957-1958, p. 199). A entrada do pai, enquanto suporte da lei, produz um corte, ele questiona o lugar da criança e a separa da posse exclusiva da mãe, engendrando a lei de proibição do incesto e, ao mesmo tempo, evidenciando para a criança que a mãe não se basta (castração/incompletude materna) e, mais ainda, que ela (a criança) não basta à mãe, desvinculando-a de sua identificação ao falo. A mãe é dependente de um objeto, que já não é simplesmente o objeto de seu desejo, mas um objeto que o Outro tem ou não tem.
Segundo Carreira (2000), o desvanecimento da relação dual ou especular entre a mãe e a criança, devido à entrada de um terceiro elemento (pai) nesta relação narcísica, é o cerne do surgimento da angústia. Esta angústia traz a marca de uma perda e implica em uma transformação do “eu”, que deixa de ser fundamentalmente especular e se torna gradativamente social, identificado a outros ideais que não somente os advindos da relação especular com a mãe. A mediação assegurada pela função paterna relaciona-se intimamente com o que em psicanálise é denominado de “ideal do eu”.
É preciso levar em conta, ainda, que a angústia irrompe pois a própria criança passa a temer que, tal como a mãe, ela própria venha a ser castrada, o que a força a reagir, a dar uma resposta.
Tal resposta lembra Sauret (1998) pode ser de aceitação ou de recusa da castração, colocada em cena pelo Édipo que, entendida como um ato simbólico é um efeito do significante que permite o surgimento do sujeito: “não há sujeito fora da linguagem”.
Dito de outro modo, o que o Édipo põe em marcha é o enigma, posto na linguagem, do desejo do Outro. O que o Outro deseja? “Ele me diz isso, mas o que é que ele quer?” O que o Outro quer de mim para que eu seja o que lhe falta, para que garanta a minha existência? Se não posso completá-lo porque o Outro é castrado, portanto, há pai (o que Lacan chamou de Nome-do-Pai, lugar da Lei), o que eu quero? Qual é o meu desejo?
Essa exploração infantil da relação com o Outro desemboca, diz Sauret (op. cit.), num impasse que Freud identificou como neurose infantil.
O Outro materno aparece como caprichoso, isto é, como uma lei onipotente que decide, a seu bel prazer, se satisfará ou não o sujeito. Sem a mediação paterna, o filho torna-se uma espécie de joguete nas mãos da mãe. No entanto, o sujeito pode ser conveniente ao Outro, ou não. E aqui certamente já incide a interpretação que o sujeito dá à demanda do Outro: sim, o Outro me quer; ou não, o Outro não me quer. “O estilo da interpretação depende do que Freud havia situado sob o termo de fixação”.
De qualquer modo, qualquer que seja esse estilo, essa maneira de responder à demanda do Outro, haverá impasse. “E esse impasse não implica nenhuma saída natural em algum desenvolvimento que seja: é o impasse, que “impele” a fazer apelo a um elemento da estrutura exterior à relação com o Outro materno, o pai. Tal é a função desta vez do pai simbólico: humanizar o desejo da mãe, pondo-o de acordo com a lei”. (Sauret, id., p. 21). O que é o infantil, então?
Um ponto de inércia, ou de gozo no qual o sujeito se fixa e traz a marca, o rastro, de um momento no qual supostamente tamponou a falta do Outro/a castração materna, isto é, foi o falo. Momento esse – mítico – que remete a um traço do perverso polimorfo da infância e que pode ser um traço oral, anal, voyeur, masoquista, sádico etc.
O infantil é o que da criança não se desenvolve, diz Sauret (1998), o que marca a sua diferença com relação à noção evolutiva de infância. Assim, existiria um infantil no psiquismo que seria irredutível a qualquer dimensão cronológica e evolutiva. (Birman, 1997).
Justamente por isso é preciso ‘deixar cair a criança’ e a psicanálise é uma boa maneira de fazê-lo!
Aceitar a castração, do Outro em primeiro lugar, nada mais é que consentir com a solução paterna. “E é nisso que ele [o pai] é ou não é aceito pela criança como aquele que priva ou não priva a mãe do objeto de seu desejo”. (Lacan, 1957-1958, p.197). Não aceitar a solução paterna leva, homem ou mulher, a ser o falo, aprisionado e profundamente assujeitado aos caprichos maternos.
É preciso ter o Nome-do-Pai. Mas isso não basta: “... é preciso ter o Nome-do-Pai, mas é também preciso que saibamos servir-nos dele. É disso que o destino e o resultado de toda a história podem depender muito” (Lacan, op. cit.).
A função do Édipo é precisamente induzir o sujeito a reconhecer (aceitar) sua condição de castrado o que implica, primeiramente, a renúncia a ser o falo, mais ainda, implica renunciar a tê-lo, isto é, a pretender ser o mestre. Além disso, a castração não se refere apenas ao sujeito, refere-se também ao Outro, e é nisso que ela instaura uma falta simbólica, justamente a “falta que cria o desejo”, um desejo que deixa de ser submetido ao ideal paterno. (Chemama, 1995).
3º) No terceiro tempo, o pai intervém e se revela, em seu próprio discurso, como aquele que tem o falo, e não como o que o é, fazendo-se preferir em relação à mãe. É isso o que possibilita que a criança, assim como o pai, por não ser o falo, o que implica a castração, possa vir a tê-lo. Deste terceiro tempo depende a saída do complexo de Édipo, a qual é favorável na medida em que há a identificação da criança com o pai – aquele que tem o falo – resultando na formação do “ideal do eu”.
Trata-se, mais propriamente, de uma identificação da criança não com a pessoa do pai, mas com certos elementos significantes dos quais é o suporte, digamos as insígnias do pai: um distintivo que alguém leva para assinalar que está ocupando um lugar, desempenhando uma função, tendo um papel, que fica indicado através das mesmas. (Bleichmar, 1984).
Sem a mediação do “ideal do eu”, assegurada pela função paterna, o que há é aprisionamento ao desejo materno, sem saída para a construção de laços sociais, enfim, sem espaço para o sujeito. É a alienação, a impossibilidade de sair de uma relação dual agressiva, é a fixação em uma posição infantil.
É também nesse ponto – o ideal do eu – que o sujeito encontra um lugar para si de onde se vê como possível de ser amado, na medida em que satisfaça a certas exigências (Nasio, 1997).
Retomando, se o pai tem o falo, pode perdê-lo, por exemplo. Há, então, a constatação de que ninguém possui efetivamente o falo, pois este circula. Em outras palavras, o falo é reinstaurado na cultura. A Lei também é instaurada tanto para a mãe, quanto para criança: “não reintegrarás teu produto” para a primeira, e “não dormirás com a tua mãe, mas sim com qualquer outra mulher”, para a segunda. O pai aparece como permissivo e doador: ele possibilita o direito à sexualidade e, como conseqüência, produz-se a assunção da identidade de ser sexuado (ser sujeito de um sexo), se contar como homem ou mulher.
No entanto, para aí chegar há algo a ser atravessado pelo sujeito em análise: a fantasia.
Mas, o que é fantasia para a psicanálise?
Em se tratando de fantasia há um texto freudiano fundamental ‘Batem em uma criança’ , de 1919, o qual é considerado o paradigma analítico da fantasia. Nele, Freud realça a relação da fantasia com sentimentos de prazer, com a busca por satisfação. E se a criança a menciona mais facilmente, o adulto dela se envergonha.
Para Miller (2002), esta vergonha ocorre porque a fantasia surge ao adulto em contradição com seus valores morais, uma vez que geralmente tira o conteúdo de sua fantasia do discurso da perversão. Logo, a fantasia é transgressiva, é perversa. Talvez esse seja um dos motivos pelos quais a fantasia também traumatiza.
Freud (op. cit.) destaca a seguinte fantasia repetida reiteradamente por seus pacientes: ‘Batem em uma criança’. Tal fantasia, continua Freud, vinha acompanhada de um alto grau de prazer e de satisfação auto-erótica.
Prosseguindo em suas investigações Freud (id.) a toma – a fantasia de espancamento, uma fantasia sádica/masoquista – como um “traço primário de perversão”.

Um dos componentes da função sexual desenvolveu-se, ao que parece, à frente do resto, tornou-se prematuramente independente, sofreu uma fixação, sendo por isso afastadas dos processos posteriores de desenvolvimento (...). (Freud, 1919, p. 197, grifo meu).

Freud (1919) salienta que uma perversão deste tipo, em jogo na fantasia de espancamento, não persiste necessariamente por toda a vida, apontando outros destinos possíveis para a perversão infantil, a saber: o recalque, a formação reativa e a sublimação. Na ausência de um destes destinos, persiste a perversão, uma fixação exclusiva em uma satisfação infantil.
Retenho do texto freudiano as fases ou tempos da fantasia de espancamento, representadas pelas frases seguintes:
1ª) ‘O meu pai está batendo na criança’;
2ª) ‘Estou sendo espancada pelo meu pai’;
3ª) ‘Provavelmente estou olhando’.
A respeito destes tempos, Freud frisa que a segunda das frases acima, é uma construção da análise, mas nem por isso é menos uma necessidade.
Notem, então, que a fantasia pode ser formulada em uma frase, cujos três tempos não são mais que variações gramaticais. Há, portanto, em Freud, diz Miller (2002), uma gramática da fantasia, o que será menos enfatizado por Lacan do que sua lógica.
Lacan propõe o matema $ ^ a (lê-se “sujeito barrado punção de a”) para abordar a fantasia. Ele designa a relação particular de um sujeito do inconsciente, barrado e irredutivelmente dividido por sua entrada na linguagem, com o objeto pequeno a, que constitui a causa inconsciente de seu desejo. (Chemama, 1995).
Cabe esclarecer que o sujeito é escrito por Lacan com a letra S, sendo a barra o que representa o nascimento e a divisão do sujeito, consecutivos à sua entrada na linguagem. Daí o símbolo $ (“S” barrado), que sinaliza, ainda, a castração do sujeito e seu submetimento à linguagem: não somos a origem do sentido e nem o controlamos.
O outro símbolo é o símbolo lógico ^ (punção) que consiste na união de outros dois: o da conjunção (^) e o da disjunção (v) e que significa a alienação (^), mas também a separação (v) da posição de objeto do Outro. O “a” é o que Lacan formulou como “objeto a”, objeto causa do desejo.
Mas por que alienado e separado? Porque se o sujeito convier ao gozo do Outro, ele ficaria totalmente à mercê desse gozo, como um objeto a ser devorado, por exemplo. Isso o faria desaparecer como sujeito, anulando seu desejo. Ocorre que, diante dessa possibilidade, surge a angústia e, horrorizado, o sujeito se furta ao Outro.
Trata-se, portanto, de um paradoxo entre a faceta objeto e a faceta sujeito do sujeito (Carreira, 2007).
Segundo Carreira (2007), a fantasia (ou fantasma, de acordo com alguns autores) é uma solução que permanece inconsciente e que lança o sujeito em movimentos de aproximação e afastamento do desejo do Outro, retornando em todas as suas produções e em suas relações interpessoais. “Trata-se do infantil: aquilo que não se desenvolve”.
Deve ficar claro, ainda, a partir do ensino de Lacan, que a fantasia apresenta níveis ou dimensões diferentes. No caso acima, trata-se da fantasia em sua dimensão simbólica.
Pode-se falar de fantasias também em seu aspecto imaginário, isto é, que compreendem a relação entre o indivíduo e suas imagens. Tem a ver com o que Freud chamou de “devaneios” e “sonhos diurnos”.
Lacan acrescenta, ainda, uma terceira dimensão da fantasia: a dimensão real, que aponta para a fantasia como um resíduo imodificável.
Há também uma importante marca da fantasia, indiciada no famoso exemplo freudiano do Fort-Da, enquanto algo que busca obter prazer, a partir de algo desprazeroso. Resumidamente, trata-se de uma brincadeira realizada por um menino de um ano e meio de idade, neto de Freud, e por ele observada, em que um carretel de madeira amarrado com um pedaço de cordão era repetidamente lançado para longe, e depois trazido para perto, acompanhado, respectivamente, das palavras alemãs ‘Fort’ (“longe, foi”) e ‘Da’ (“aqui”). Para Freud (1920), tal jogo é uma tentativa de representar simbolicamente a presença e a ausência da mãe, ou mais propriamente, de dominar a e de elaborar a ausência da mãe.
É importante frisar a ausência da mãe porque é a ausência do Outro que presentifica e põe em evidência seu desejo. (Miller, 2002). Ora, se a mãe não está é porque deseja algo para além da criança (cf. segundo tempo do Édipo para Lacan, acima), apontando para um desamparo primordial. Se a mãe foi embora pode ser que não volte. É precisamente isso que angustia: a manifestação do desejo do Outro, colocando a fantasia em ação . Então, a fantasia pode ser situada como o que recobre/tampona a angústia suscitada pelo desejo do Outro.
Todas as vezes que houver a manifestação do desejo do Outro, ou em outras palavras, quando a consistência do Outro sofrer uma vacilação, isto é, quando o Outro faltar/falhar o sujeito será compelido a fantasiar para escapar de seu desamparo iminente, trazendo à tona, via repetição, a maneira infantil com que primordialmente respondeu a isso.
Assim, a fantasia tem uma função de apaziguamento da angústia, de sustentáculo da realidade, no sentido de que o fantasiar satisfaz o sujeito em parte, quando o Outro lhe falta, permitindo adiar o restante e de sustentáculo do próprio sujeito, como uma forma de lidar com seu desamparo. Mas a fantasia tem também uma função traumática. Isso porque Freud eleva a fantasia à condição de fato. Ambas têm o mesmo poder na formação dos sintomas.
Se a fantasia é a saída de que o sujeito dispõe, primordialmente, para lidar com a manifestação do desejo do Outro, sendo que na neurose é usada de modo que o Outro apareça sempre como completo, a análise propõe a sua travessia, propõe, enfim, uma modificação da posição subjetiva na fantasia: de objeto que tampona a falta do Outro (posição infantil) para objeto que causa o desejo do Outro (posição feminina). Sem dúvida, uma diferença abissal.

Referências

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