02 março 2010

Colóquio sobre a direção do Tratamento

Colóquio sobre a direção do Tratamento
Intervenção

(Ribeirão Preto – Lalingua - 15/11/2008)

Antonio Gonçalves dos Santos



Como testemunho de minha alegria por aqui estar como convidado por Lalingua para esta intervenção perpetrei um Wunsh.
“Que ao fim e ao cabo esta intervenção deixe a desejar: eis meu voto. Wunsh freudiano para fazer frente à modernidade, ao dito pós-moderno, visto que para este nada basta. Basta nada para ao final da operação restar um resto. Um resto que caia bem – uma aposta – que caia e faça efeitos no só depois.”


Ainda que nem tudo tenha um começo - vide estrutura que é sem gênese – eu precisava de um mote para iniciar. Então, recorri ao dicionário, que me deu uma definição de colóquio: conversação ou palestra entre duas ou mais pessoas e o mesmo dicionário arrematou com estilo coloquial, isto é, uso de vocabulário e sintaxe próximos à linguagem cotidiana. De partida já lhes digo que, embora empenhado neste preceito, peço indulgência caso não o consiga cumprir.

Como podem notar, é um começo pífio. Mas a fortuna me favoreceu com seu ar de tyche, pois li no folheto de divulgação deste colóquio que atendo em Ribeirão Preto e em São Paulo.
De imediato fui tomado pela posição intransigente: sou praticante, pratico a psicanálise. Aristóteles se compadeceu e compareceu com a noção de práxis/pratikós, entendida como ação virtuosa. Ele a situa no campo da poiesis e não da techne , ou seja, inicialmente criação, ação, confecção e depois faculdade poética e arte da poesia. No filósofo grego potência e ato são parceiros e, como decorrência, uma ação pode ou não se realizar: potência de fazer e de não fazer. Alias em Martin Heiddeger (1889-1976) a poiesis é entendida enquanto processo de transformação de uma coisa em outra, por exemplo, da neve em cascatas de água.

Mas, voltando ao furo, me pus a escutar o verbo atender como uma voz, visto que na Biblia, como está dito em Êxodo: todo povo vive das vozes . A voz me põe no eixo do Outro, pois na pulsão invocante trata-se do desejo do Outro e, portanto, da divisão do Sujeito, mais ainda (encore - en corp) trata-se de um ponto de alienação radical do Sujeito. Então, me coloco escutando essa voz não de uma pessoa, “mas uma voz concebível apenas, (...) uma voz que não ex-siste, justamente por não dizer nada, mas a voz em cujo nome eu, por minha vez faço ex-sistir esta resposta que é interpretação” (J. Lacan: Televisão, p.528).

Se a palavra/significante atender remete a atender o outro e nos coloca sob a sombra psicológica da demanda e a conseqüente vestimenta imaginária, em francês possibilita attendre - estar à espera de - e em latim nos oferece attenditus: ação de permanecer até que alguém chegue. O analista espera, espera que sua oferta de análise crie os pedidos de tratamento. Em italiano attendere nos oferece tanto dedicar-se, aplicar-se como também ficar atento: parafraseando Boccaccio, que o analista “fique atento ao que não lhe direi”. O analista escuta não só os significantes, mas também ‘ao que não lhe será dito’, os intervalos da cadeia, onde o desejo emerge.

Após esta tímida incursão nas trilhas do deciframento do inconsciente, o que aponta em análise para o desejo do analista, me subtraio em meio a operação que a própria ação de interpretação (lato sensu) - a tática do analista - deve produzir no Sujeito. As palavras do analista têm efeito de interpretação e dependem do lugar de onde ele as profere.
A subtração nos remete a que, se em análise temos uma relação entre dois, nela não cabe senão um só Sujeito: não há lugar para o desejo de sujeito do analista. Ele empresta sua pessoa como suporte para a transferência, mas não se oferece como pequeno outro.

A subtração nos remete ao manejo da transferência – a estratégia do analista – onde sua pessoa é desdobrada, mas ele deve saber não ser da sua pessoa que se trata. Seu lugar é o do grande Outro e sua função é de objeto a, objeto causa de desejo.

Neste giro inicial uma palavra de confiança, de confiança no significante, escutar o significante, sem ignorar que nem tudo que é estrutura é significante; escutar os significantes da demanda sem se fixar neles. A cadeia significante é comandada pelo resto produzido na operação de fala do sujeito: o objeto a.

Um recorte clínico:

//L. se diz obediente à tirania evitando as brigas. O porquê é apresentado pela analisante sob o significante desmanchar: obedece para não se desmanchar. Desmanchar a leva a falar dos mercados e de que tudo que é sólido se desmancha no ar. A escansão do significante des-mancha a conduz a colher uma lembrança de quando era criança: se sentava no colo de Y. a pedido dele e com apoio dos pais: ele era bom e não tinha filhos. L. diz que sentar no colo lhe causava repulsa, pois os pais lhe deviam dinheiro e esses empréstimos eram cobrados com juros extorsivos. L. assim agia para não manchar o nome dos pais. A seguir se recorda de uma cena no ônibus escolar onde mostra, entre risinhos, a ‘xoxota’ para os meninos. Convence a mãe que devia comprar chaveirinhos para dar aos meninos. Dados os presentes um pacto sem palavras, um pacto de silencio foi estabelecido. Seu nome ficou sem mancha. Com a pontuação de mancha lhe ocorre a mancha de xixi no lençol quando ia dormir na cama, entre os pais.//


A política do psicanalista é a política da falta a ser, pois sua ação não está sob o domínio de um saber prévio e está fundada na relação do desejo com a sua causa que é a falta a ser. A ação do psicanalista se orienta pela elaboração de um saber inconsciente produzido através da fala do sujeito em análise. Assim o analista deve favorecer o surgimento do sujeito do inconsciente (o qual conduz o tratamento, mas não o dirige) através dos significantes presentes na fala do analisante. A ação do analista sobre o sujeito do inconsciente lhe escapa e só é virtuosa, eficaz, na medida em que se apresenta de forma fragmentada.
A posição do analista é orientada pela ética do desejo (não pelo querer bem, ou bem querer, ou pela caridade). O desejo do analista é o que orienta a direção do tratamento em cada análise.

“A Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder” (1958) é um texto paradigmático do que podemos denominar período do simbólico, no qual o significante é o eixo fundamental da construção teórica de Lacan. Assim a vertente significante abre para as produções do sentido, sendo o sentido do sintoma dado pela relação do Sujeito com o significante. O analista na posição de Outro, de Outro do sintoma, no lugar de um saber que não se sabe, favorece um sentido para o sintoma. O analista na posição de suporte da transferência favorece os significantes que apresentam a demanda e o desejo.

Ora, neste momento da práxis lacaniana transita-se entre o reconhecimento do desejo no lugar do desejo de reconhecimento e a posição de ser para a morte. Destarte, o desejo deve ser tomado ao pé da letra, escutado na cadeia significante: o desejo é elevado a conceito central na linha do desejo do Sujeito é o desejo do Outro.

A analise se assenta no ponto de partida do inconsciente estruturado como linguagem, em especial nas oposições entre significante e significado. Como estruturante temos a falta no Simbólico, pois um significante não significa a si mesmo. A falta remete à causa do desejo.
Ocorre que o desejo, bem como o falo , não dá conta do pulsional em jogo no Sujeito, ambos não dão conta da pulsão e de sua satisfação. Esta constatação teórico - clínica levará a mudanças diversas no ensino de Lacan, sendo neste percurso o Gozo promovido a uma posição central.

“A Direção ...” propõe como final do tratamento a posição do Sujeito de ser para a morte. Além de ressonâncias hegelianas, aí encontramos uma concepção próxima a M. Heidegger: a instituição da morte a ser subjetivada pelo sujeito. O ser para a morte em Lacan aponta não só para que o sujeito se dê conta da inexistência de resposta para o desejo, como também aponta para que o significante morte ressiguinifique o tratamento - próximo à idéia de introjeção da castração - levando o sujeito à assunção da incompletude. Mas o significante morte não garante a verdade do sujeito e não garante que “Tudo sob o sol é vaidade” (Eclesiastes) pois a morte é um significante a mais na cadeia, cadeia que se dialetiza com um a mais, um a mais, um a mais, infinitamente.

Então, Lacan se deslocará do desejo para o objeto a partir da inclusão da pulsão como conceito fundamental (Seminário11): objeto causa de desejo.

Então, a via significante não dá mais conta da separação do Sujeito em relação ao objeto que lhe oferece a completude imaginária. Não há duvidas que o Sujeito se aliena no objeto (S a).

Então, Lacan mostra que o significante não dá conta, não pode saturar o que é do gozo, e introduz o objeto a, fixando-lhe o traço de excesso de Gozo: objeto mais de gozar. O gozo excede ao que é temperado, colonizado, regulado, anulado pelo significante. O objeto a é então apresentado não só como condensador de Gozo, mas o Gozo é a instância a partir da qual se situam o Sujeito e o significante. Do gozo surge o significante, no ponto de articulação do Gozo está o surgimento da ordem simbólica e o desencadeamento da repetição do significante - repetição como expressão fenomênica da pulsão de morte, do fazer Um .
Então, o final do tratamento não se dá nem no desejo de reconhecimento, nem na criação de um significante novo, nem em ser para a morte, nem na desidentificação frente ao falo, mas sim concerne ao irredutível do gozo: identificação ao sintoma com a satisfação do gozo possível, o sinthome, o trabalho da letra com o sujeito desabonado do inconsciente (Joyce).

Então, o “sintoma não é apelo ao Outro, não é aquilo que é mostrado ao Outro. O sintoma, por sua natureza é gozo... gozo encoberto [involucrado, embrulhado] sem dúvida... ele se basta”. O sintoma é um aparelho do sujeito que situa o objeto a, essa parte elaborável do Gozo. Como não é possível a completa metaforização ou a completa evacuação do Gozo, pois há resto, o sintoma é suplência desta impossibilidade (fracasso?) estrutural. Ora o sintoma faz do Gozo a sua referência em uma cifra que não inclui o Outro, pois o destinatário é o próprio sujeito. ‘O osso duro de roer na clínica’. O Real, o Imaginário e o Simbólico se anodam pelo sintoma que o sujeito se torna.

Então, se no desejo estava em jogo o lugar do Outro na posição de analista, privilegiando o desejo na negação do gozo, no Gozo está em jogo, na posição de analista, o lugar de objeto causa de desejo e do resto do que foi significado na operação analítica, resto a ser descartado: o mais de gozar.

Então, para além da decifração da mensagem naquilo que o analisante enuncia, se encontra um campo não balizado pela estrutura de linguagem, mas sim pela “lalingua” e com os efeitos que ela engendra no corpo. Aqui podemos entender o axioma lacaniano que “o gozo é proibido ao ser falante enquanto tal”, pois o sujeito nunca consegue dizer tudo e a palavra parasita o Real de “lalingua” e suporta o gozo fálico (situado na intersecção entre o Real e o Simbólico), o gozo que sobra da busca de satisfação pulsional, isto é, o gozo do sentido – gozo da fala - que não comporta o gozo “todo” .

Então, a interpretação não visa à significação, nem o sentido, na relação do Outro com o sujeito; ela opera no intervalo da cadeia e/ou aponta para o nada e o corte aponta para “lalingua” e o Gozo do Um no corpo. Com Collete Soler podemos dizer que a escansão tem tanto uma função vinculada à interpretação, e conseqüente emergência de algum sentido, quanto uma função vinculada ao ato, fazendo surgir na suspensão uma possibilidade do sujeito se enfrentar com o não-sentido do pulsional.

Recorte clínico:

S. fala de estar sem dinheiro na bolsa; pontuado pelo analista o significante bolsa, emerge um relato de como, mesmo quando não quer, sua mãe coloca dinheiro em sua bolsa: enfia dinheiro na bolsa. Escandido enfia associa a ela encolhidinha pensando sobre a procura do namorado para ter relacionamento sexual: enfia, enfia logo.//
No encontro com o analista se produz uma abertura que mobiliza a junção entre o Real do gozo e o significante. No objeto bolsa está o Sujeito em seu fazer-se pulsional, na encarnação mortífera do significante. O sintoma enquanto modo do Sujeito gozar de seu inconsciente. No entanto, neste tempo da análise deste Sujeito não se pode ainda extrair o objeto. A fantasia intervém como limite fixador: o sujeito é anônimo e todo mundo judia e enfia.

O analista entende que produzindo sentido – o que orienta a significação - se produz Gozo. O analista não produz entendimento, o qual se impõe como um efeito psíquico de gozo, o analista deixa em suspenso o Gozo. O analista favorece que o sujeito se dê conta que não há no saber uma resposta sobre seu gozo.

Oxalá que a intervenção deixe a desejar e, pois no que resta que permaneça um resto!

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