Entrevistas de triagem no contexto de uma clínica-escola de psicologia: qual direção? Juliana Augusta Soares
Como psicóloga responsável pela criação e condução de um serviço de triagem em uma clínica-escola de psicologia, inserida em uma instituição particular de ensino, proponho-me, neste trabalho, a realizar uma reflexão sobre a prática que lá venho desenvolvendo, em articulação com o texto de Lacan – A direção do tratamento – que trabalhamos durante esse ano nas Reuniões Clínicas.
Trata-se, mais propriamente, de pensar na direção a ser dada nas entrevistas de triagem, a partir de uma questão fundamental, colocada desde o início do meu trabalho: O que é um tria(dor)?
Guiando-me pela psicanálise, escolha teórico-prática de minha atuação profissional, me vi as voltas com o desejo de incluir a escuta do sujeito que procura por ajuda, marca de um posicionamento ético da psicanálise, em um espaço de recepção como a triagem, comumente definida como um dispositivo para selecionar pacientes, reunir informações sobre os mesmos e encaminhá-los, ou talvez, despachá-los.
Assim, ao longo do tempo, já são mais de 2 anos de trabalho, passei a usar, na instituição, o significante “triagem interventiva” para marcar uma diferença entre este trabalho e o que, via de regra, é feito em dispositivos como esse, sendo bastante comum a tomada do paciente como mero objeto de pesquisa.
E o que significa tomar o paciente que se inscreve em uma clínica-escola como sujeito, pondo-se a escutá-lo?
Trata-se do sujeito submetido às leis da linguagem que o constituem, e que se manifesta de forma privilegiada nas formações do inconsciente. Não se trata, portanto, de um sujeito que possa ser substantivado.
Para a psicanálise, escutar esse sujeito é a única via que pode levá-lo à implicação e responsabilização por sua procura e queixa/sintoma, não sem eximir de responsabilidade aquele que escuta.
Além disso, se para a maioria dos psicólogos que trabalham em serviços de triagem, faz parte um arsenal de instrumentos para diagnosticar e encaminhar o paciente – preenchimento de roteiros extensos com questões pré-estabelecidas, aplicação de testes psicológicos, etc – o único instrumento de que dispõe um psicólogo atravessado pela psicanálise é a escuta e é esta que deve orientar o encaminhamento.
Hoje já não estou mais sozinha neste trabalho. Alunos da graduação em psicologia têm participado deste trabalho, como estagiários, na proposta que lhes fiz, a partir da oferta de uma extensão em triagem interventiva.
Da criação do serviço de triagem à oferta da extensão em triagem interventiva muitas questões têm se colocado: Até onde podemos intervir? Qual é a diferença e o que mantém a identidade entre a triagem interventiva e o atendimento psicológico propriamente dito? Há espaço para a interpretação? Quais têm sido os efeitos dessa proposta sobre os pacientes que nos procuram?
Proponho inicialmente tomar as entrevistas de triagem como análogas às entrevistas preliminares, para pensar na direção a ser dada nas mesmas.
Enrevistas preliminares é o termo utilizado por Lacan para se referir ao momento que antecede a entrada em análise e que corresponde, em Freud, ao tratamento de ensaio.
Para Freud (1913), este tratamento de ensaio (experimento preliminar) é ele próprio o início de uma análise e deve conformar-se às suas regras.
A esse respeito, Quinet (1997) propõe o seguinte esquema:
EP = A ↔ EP # A
E que se lê: entrevistas preliminares são iguais à análise, implicando que entrevistas preliminares são diferentes da análise.
De fato, nas entrevistas preliminares, há um ponto na qual não estão em ruptura com a própria análise: o mundo regrado da associação livre, a partir da qual o sujeito emerge entre os significantes (QUINET, 1997).
A associação livre é portanto o que mantém a identidade entre as entrevistas preliminares e a análise.
Mas, se a associação livre mantém a identidade entre ambas, o que as diferencia? O tempo do diagnóstico, colocado em jogo como questão principal nas entrevistas preliminares. É a partir da hipótese diagnóstica formulada nessas entrevistas que se direcionará o tratamento.
A direção do tratamento consiste, então, primeiramente, em fazer com que o sujeito aplique a regra analítica, isto é, a associação livre, o que vale, como vimos, desde o início das entrevistas preliminares.
As entrevistas preliminares podem ser divididas, do lado do analista, em dois tempos: um tempo de compreender e um momento de concluir, no qual o analista decide se tomará o paciente em análise.
Quinet (op. cit.) aponta, ainda, as seguintes funções das entrevistas preliminares:
1ª.) Função sinto-mal: “Eu faço isso e não sei porquê”; implica um mal-estar; está em jogo a demanda de análise e a analisabilidade do sintoma, isto é, a transformação da queixa numa demanda endereçada àquele analista (significante qualquer do analista). Deve haver a passagem do sintoma do estatuto de resposta ao estatuto de questão/ de enigma a ser decifrado (momento de histerização que atesta a divisão do sujeito): “ Porque será que eu faço isso?”
2ª.) Função diagnóstica: diagnóstico diferencial estrutural, a partir do levantamento de uma hipótese diagnóstica, baseado numa das três formas de negação da castração do Outro (neurose, psicose e perversão).
3ª.) Função transferencial: o estabelecimento da transferência é necessário para que uma análise se inicie. A transferência não é uma função do analista, mas do analisante. A função do analista é saber manejá-la.
Deve ser introduzido, então, já nas entrevistas preliminares, a questão do desejo e a implicação do sujeito em suas queixas, a partir da resposta à questão: “Qual é sua participação na desordem da qual você se queixa?”, momento em que pode haver uma retificação subjetiva.
Pensando nas entrevistas de triagem, poderia dizer, em analogia com o esquema proposto por Quinet, que:
ET = EP ↔ ET # EP
E que se lê: entrevistas de triagem são iguais às entrevistas preliminares, implicando que entrevistas de triagem são diferentes das entrevistas preliminares.
Também nas entrevistas de triagem a regra da associação livre é mantida. Mas, se nas entrevistas preliminares, a indicação do divã, por exemplo, opera o corte entre o que era preliminar e a análise propriamente dita, nas entrevistas de triagem o encaminhamento opera o corte. Cabe ao triador decidir qual encaminhamento, um encaminhamento possível.
Aqui cabe fazer uma breve caracterização da instituição e das possibilidades de encaminhamento, uma vez que os pacientes triados são prioritariamente encaminhados para os atendimentos lá oferecidos.
Trata-se, como já disse, de uma clínica-escola de psicologia de uma instituição particular de ensino, que até a minha contratação, a qual se deu mediante uma demanda dos supervisores de estágios, não dispunha de um serviço de triagem.
A clínica oferece à comunidade, gratuitamente, as seguintes modalidades de atendimentos, sob a forma de estágios supervisionados, em diferentes abordagens teórico-clínicas, com até 50 vagas cada, variando a duração do atendimento, em geral, de um semestre a um ano:
1) Clientela infanto-juvenil: ludoterapia, psicologia escolar, psicologia do excepcional, psicologia da saúde, psicoterapia de grupo, psicoterapia individual infanto-juvenil, psicodiagnóstico e orientação profissional;
2) Clientela adulta: psicologia do excepcional, psicologia da saúde, psicoterapia de grupo, psicoterapia individual, psicodiagnóstico e orientação profissional.
Quanto às funções do triador, diria, em resumo, que cabe a ele, nas entrevistas, ofertar o discurso analítico, dando uma chance ao sujeito.
Cabe ao triador, ainda, dizer o necessário para que o sujeito continue a falar, colocando a fala do sujeito em movimento e, de preferência, estranhando-a.
A busca pela responsabilidade do sujeito quanto à procura de atendimento é um dos principais objetivos do processo de triagem que chamei de interventivo, entendendo aqui por responsabilizar o início de uma (ou alguma) implicação subjetiva do sujeito frente a sua procura por ajuda e ao seu sofrimento. Portanto, não é condição para o encaminhamento que o sujeito entre em análise, nem poderia. O sujeito não continuará a ser atendido pelo triador, salvo exceções, e os encaminhamentos incluem diversas possibilidades, como anteriormente mencionado, com inúmeras vagas.
A oferta de escuta, portanto, é para todos. Mas nem todos topam falar de si, ou aceitam a aposta de que podem saber de si.
Uma mulher vem à clínica buscar atendimento para o fillho: “ele não tem parada”. Refere que o pai do menino está na “cadeia”. Teve um segundo companheiro, que também está na “cadeia”. A mulher refere que, no primeiro caso, foi ela mesma quem o denunciou: ele é usuário de drogas e furtou os objetos de sua casa. Pouco tempo depois de começar a namorá-lo, ele foi pra cadeia. Engravidou do primeiro filho lá. Do segundo, também. Família sempre foi muito “complicada”. Pai, tios, etc eram usuários ou vendiam drogas. Acabavam na cadeia, presos. Pai esteve na cadeia durante os 10 primeiros anos da vida desta mulher, e ela sempre ía visitá-lo. Cadeia, cadeia, cadeia. Marco a repetição do significante cadeia. Ela se questiona: Por que será que na minha vida sempre tem cadeia? Corte de sessão. Que este menino não encontre seu lugar de parada, preso, na cadeia...
Visando acolher caso a caso, num atendimento em direção oposta à massificação, extrai-se sua principal consequência: não há um atendimento, nesse caso, em triagem interventiva, padrão.
As questões se avolumam: Mas e se os pais trouxerem à criança na primeira entrevista? A criança pode entrar junto com os pais? E se os pais forem separados? E se vier a avó, e não a mãe? E se for um adolescente? Um adulto?
Não, não há respostas a priori. Mais uma vez, a escuta é chamada a nos orientar.
Os pais “forçam” sua entrada e, realmente, a idade cronológica do paciente, diz muito pouco.
E quanto à natureza do que se deve dar como resposta? Elas tem uma importante implicação – o tamponamento ou a abertura da dimensão subjetiva. Portanto, quais são os efeitos que quero produzir nos pacientes que escuto?
Responder à demanda do paciente, por exemplo, produz um fechamento das questões subjetivas, ao manter a relação dual, essencialmente alienada e alienante.
E quanto a resposta da psicanálise à medicalização reinante em nossa época, como no caso da “ritalina” e do “conserta”, prescritos em um grande número de casos que chegam todos os dias à clínica, com o diagnóstico de “TDAH”?
A esse respeito, Mannoni (2004) ressalta a importância de não entender ao pé da letra o pedido dos pais para que se abra uma porta para o campo da neurose familiar: dificuldades escolares, por exemplo, encobrem quase sempre outra coisa, mascarando mal-entendidos, mentiras e recusas de verdade; é preciso questionar esse “diagnóstico”, esse “sintoma escolar”.
Em suma, o paciente “fala à instituição” e recebe desta uma resposta em forma de pergunta: “o que você quer?, causando um efeito surpresivo, em especial, quando o paciente não espera, sendo prontamente atendido (Salinas; Santos, 2002).
De qualquer modo, a resposta a ser dada deve passar pela ética, desarticulada dos ideais e do bem-estar.
“Eu não gosto de ir no médico. Eu fujo de médico. Médico dá receita. Eu quero falar”.
Há espaço para a interpretação? Quanto a isso Freud (1913) e Lacan (1958) são bem claros: a interpretação deve ser adiada até a consolidação da transferência (um dos pontos que marcam a entrada em análise), pois é somente a transferência que autoriza a interpretação que poderá incidir sobre o ser do sujeito. Trata-se de um princípio de seu poder – esse poder (transferência) que só permite a solução do problema na condição de não se servir dele, mas manejá-lo.
Até onde intervir? Esse me parece ser o “segredo” na condução das entrevistas, intimamente relacionado com um afinamento da escuta e do manejo analíticos.
Dos limites impostos a um espaço como a triagem, considero que, apesar destes, é possível um trabalho que possibilite o aparecimento do sujeito, com os efeitos daí decorrentes. Permite, também, ao triador vislumbrar questões transferencias e diagnósticas, realizando uma espécie de “ensaio clínico”, além de um lugar privilegiado para intervir na instituição, modificando, inclusive, a lógica do seu funcionamento.
Kaes (1988) lembra que a instituição, com sua tendência secular de velar conflitos em nome da preservação do instituído, pode facilmente assumir uma tendência inercial, na qual o espaço de triagem não pode consentir.
Qual direção?
A escuta, nosso instrumento de trabalho, orienta as intervenções e os encaminhamentos nas entrevistas de triagem e, nisso, não é diferente da direção do tratamento nas análises, onde é sempre o próprio paciente quem nos dirá qual é a direção de sua cura.
Referências
FREUD, S. (1913). Sobre o início do tratamento. (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XII. Pp. 139-158.
KAES, R. (1991). Realidade psíquica e sofrimento nas instituições. In: KAES, R. et al. A Instituição e as Instituições: Estudos Psicanalíticos. São Paulo: Casa do Psicólogo. Pp. 1-39.
LACAN, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. Pp. 591-652.
MANNONI, M. (2004). A primeira entrevista em psicanálise. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Elsevier.
SALINAS, P.; SANTOS, M. A. (2002). Serviço de triagem em clínica-escola de psicologia: a escuta analítica em contexto institucional. In: Psychê – Revista de Psicanálise. vol. VI, n. 009, Universidade São Marcos, São Paulo. Pp. 177-196.
QUINET, A. (1997). As funções das entrevistas preliminares. In: QUINET, A. As 4 + 1 Condições da Análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. Pp. 17-38.
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