06 abril 2010

Demanda, desejo e gozo: a direção do tratamento

Demanda, desejo e gozo: a direção do tratamento
Juliana Bartijotto

O saber psicanalítico não funciona em posição de verdade, a não ser na medida em que opera como saber furado, pois a psicanálise não permite saber tudo, o inconsciente não diz tudo, sempre tem algo que escapa, que é impossível de se dizer, remetendo ao buraco, sendo a falha estrutural. O tratamento pela psicanálise nos leva, a saber, o “não-todo”.
Em "Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder" (1958) Lacan aponta a transferência como àquela que põe em movimento à análise e a interpretação como instrumento do analista. Utilizando a relação da transferência com a demanda e o desejo com a tática, pretendo discorrer sobre esses dois termos, e ainda servindo-se do conceito de gozo proposto por Lacan no decorrer do seu ensino, na articulação com a direção do tratamento, e exemplificarei com um caso clínico.
Demanda, Desejo e gozo
A demanda é um apelo ao Outro quando se quer alguma coisa, aparece na forma de pedidos - me dá, cadê. A demanda é própria do sujeito falante, logo toda fala é uma demanda dirigida ao Outro, diferenciando-a da necessidade, que possui um objeto específico, por exemplo, se está com fome, o alimento é o objeto que satisfaz. Já na demanda não existe o objeto exclusivo, é intransitiva, fica-se exigindo na tentativa de (re)-encontrar o objeto que completa, sendo este para sempre perdido.
Para Lacan2 todo paciente demanda uma resposta e cura, mas o falar é o analista quem oferece ao paciente, pois com a oferta se cria a demanda. Toda demanda é demanda de amor, e o sujeito vive para demandar e o analista entra na seqüência, sendo que nenhuma resposta tem para dar ao analisando. Mas o psicanalista dá a sua presença, sustenta a demanda na medida em que a coloca em suspenso, deixando este lugar vazio, para que reapareçam os significantes em que sua frustração detém. Lembrando que para Lacan frustração é uma falta imaginária de um objeto real.
O desejo se trata da pergunta ao Outro - "che vuoi?". O desejo é sempre desejo do Outro, este como lugar do tesouro dos significantes, que deslocam de um lado para outro. O Significante simboliza o desejo como inacessível, é a metonímia da falta-a-ser, fazendo sujeitar o que à análise subjetiva, este só é captado na interpretação, sua mola é fazer o insucesso da demanda. O desejo é aquilo que se manifesta no intervalo cavado pela demanda aquém dela mesma, na medida em que o sujeito traz à luz a falta-a-ser com o apelo de receber seu complemento do Outro, se o Outro lugar da fala, é também o lugar da falta. O que é assim dado ao Outro preencher, e que é propriamente o que ele não tem, pois nele também falta, é aquilo que se chama de amor, mas também o ódio e a ignorância. (paixões do ser). O desejo nada é senão a impossibilidade da fala que na tentativa de responder à demanda, não consegue fazer outra coisa senão reduplicar a marca, consumando a fenda que o sujeito sofre por só ser sujeito na medida em que falta. 2
No seminário 9 Lacan explica a dialética da demanda e do desejo através de uma figura topológica, o TORO . A demanda atravessa, num movimento espiral, o buraco periférico, produzindo repetidas voltas em torno do círculo vazio, é a insistência da demanda. Ao circundar o buraco, cria-se um outro vazio, a do desejo inconsciente, que contorna o buraco central (figura 1). Como o sujeito se constitui a partir do Outro, trata-se de dois toros entrelaçados (figura 2), o do sujeito e o do Outro, confunde-se assim a demanda do Outro com o próprio desejo, pois a demanda se remete ao que o sujeito supõe que o Outro quer dele. O sujeito e o Outro estão em continuidades, aonde não existe um limite entre o interno e o externo, ocorrendo uma confusão entre demanda do Outro e desejo do sujeito, como nos diz Lacan: “desejo num, demanda no Outro; demanda de um, desejo do Outro, que é o nó onde se atravanca a dialética da frustração”.



Fig. 1 Fig. 2
Lacan inventa o neologismo - “êxtimo”- para falar do gozo, sendo a coisa mais estranha e mais íntima ao sujeito, está fora do significante, é da ordem do Real. Não há um significante que diga de todo o gozo. Este é sempre sentido pelo corpo, permanecendo inefável, num lugar inacessível, o sujeito apenas encontra objetos substitutos, que são da ordem da fantasia, e mascara a dimensão da Coisa. De um lado o gozo, enquanto a Coisa (Das Ding freudiana), aquilo que remete a pulsão de morte, e por outro o desejo, enquanto desejo do Outro, como lugar do significante. Para Vallas (2001) o significante detém o gozo, abrindo lugar para o desejo do sujeito, não há sujeito do gozo, por que nele o sujeito se abole, pois só o corpo pode gozar.
O gozo é um modo satisfação pulsional, vem em mão dupla: há o gozar de um objeto e o gozar de ser gozado como objeto, essas direções ocorrem de forma simultânea e são interdependentes. O gozo sempre será fragmentado, se há perda inicial de gozo, ocorre a tentativa da sua restituição, assumindo valor articulado ao uso, abuso e consumo. O gozo pode indicar um a mais, ocorrendo um excesso.
No decorrer de sua de sua obra Lacan estabelece várias modalidades de gozo: o gozo do Outro (se trata do corpo próprio); o gozo fálico (ligado a linguagem, um menos de gozo), o mais-gozar (ligado ao objeto a, comporta um resto); e o gozo feminino (suplementar, vai além do falo), mas não vamos nos estender a esses modos, vamos tomar o gozo que está do lado da pulsão de morte, da compulsão a repetição, algo que está para além do princípio do prazer, que faz mal ao sujeito, mas ao mesmo tempo algo difícil dele se desprender.
Direção do tratamento
Para Lacan o inconsciente é estruturado como uma linguagem, levando em conta seu modo de funcionamento, os lapsos de sua enunciação, é possível a dedução de uma falta, indicando o movimento do desejo. Isso se dá através do deslize da cadeia significante, sua operação está submetida às figuras de linguagem: metáfora (substituição) e metonímia (combinação). O sujeito do inconsciente é suposto saber, sendo efeito desse deslize na cadeia metonímica, ou ainda, o significante representa o sujeito para outro significante, pois o sujeito nasce no Campo do Outro, este pode causar o desejo, mas não satisfazê-lo. No intervalo entre um significante e outro o desejo aparece, isto provoca um distanciamento entre corpo e gozo. O gozo faz com que o corpo fique numa relação de exclusão com a cadeia da linguagem. Nesse sentido, o desejo, ao mover a demanda em relação ao Outro, possibilita um limite, um ponto de basta ao gozo.
Como manejar a demanda, o desejo e o gozo na direção do tratamento, servindo-se do princípio do poder do analista, a saber, a transferência?
A dimensão do amor está sempre em jogo na transferência. Aquele a quem eu suponho o saber, eu o amo, ou então aquele que des-suponho, eu o odeio. No início da análise o analista é colocado pelo paciente na posição de amado, aquele que tem um saber, uma resposta ao seu sofrimento, e o analista não deve ocupar esse lugar, o de suposto saber, para assim permitir o sujeito caminhar da demanda de amor para querer saber sobre o seu desejo. Analista deve manejar não partir do amor como paixão, mas sim, do amor ao saber. O analista ao apontar para o equívoco, para o mal entendido do discurso do sujeito abre a possibilidade para este o amor.
O encontro com o desejo só pode ter lugar sob o signo da castração, pois frente ao gozo o que se tem é a angústia. Para ocorrer castração (signo da falta) é necessário que o gozo seja separado do corpo do Outro do significante e da Lei. Pois entre o gozo e o desejo o sujeito tem duas opções, ou a angustia, devido à falta da falta, ou o amor que proporcionará a castração. O objeto simbólico, o falo, opera como agente que regula o gozo.
No Seminário XVII, Lacan propõe que se pense a relação analítica a partir do Gozo, pois nem tudo é significante na experiência analítica, há significantes, mas há também o gozo, este está do lado da Coisa, e o desejo está do lado do significante, no qual é para o sujeito o Desejo do Outro, onde está articulado à Lei. Então o desejo submetido à Lei vem como defesa do sujeito na sua relação com o gozo. Um sujeito não tem grande coisa a fazer com o gozo, mas por outro lado seu signo é susceptível de provocar o desejo, aí está à mola do amor.
Como tratar esse lado incurável do gozo? Posicionando-se como semblante de objeto, colocado no lugar do impossível, servindo-se do significante, mas visando para-além deste. O deciframento do inconsciente, o saber sobre a causa do desejo, transformação da posição subjetiva, mudança da relação ao gozo, são os efeitos da análise, isto implica uma desestabilização das certezas do sujeito, na tentativa de cessar as repetições. A interpretação e o ato analítico colocam em trabalho a transferência. O analista, ao jogar com o equívoco significante, desencadeia no sujeito o não sentido, o furo, bordeado pelo material significante. Contudo, o inconsciente é algo da ordem do não realizado, do que não é, sendo necessário o ato, para que nessa falta, a invenção do saber se faça primordial, e consiga moderar algo do gozo. 5 A ética do sujeito da psicanálise se refere ao desejo e ao real do gozo, na relação com uma verdade que não é universal, mas específica de cada um, o sujeito só pode semi-dizê-la, porque ela é não-toda significante. “A psicanálise não é o mundo do ser nem das coisas, mas de desejo e de gozo, só assim a existência humana assume caráter de drama, pois sem desejo e sem gozo, a vida não teria sentido”.4
Caso clínico
Alcione chega com demanda de análise para o filho Gustavo, de oito de anos de idade. Segundo informações dela, ele vinha apresentando dificuldades de aprendizagem na escola. Atualmente Alcione é casada com Rogério, ela afirma que este dá atenção para o filho, mas não é a mesma coisa que o pai. Reclama do fato de ter que se desdobrar, ser pai e mãe, em contrapartida comenta que não serve para ser mãe, “não tenho paciência, não dou atenção o suficiente a ele, às vezes até esqueço que é meu filho...”
Sempre chega atrasada para as sessões, dizendo que vive corrida, esses dois significantes -atrasada e corrida- sempre aparecem em seu discurso. Ela corre para realizar as obrigações, para adiantar, mas sempre se atrasa. Assim o faz nas sessões, trata-se de transferência. Faz tudo correndo, enquanto Gustavo é lento para fazer a lição, se refere a ele da seguinte forma: “é lento, preguiçoso, quer fugir das responsabilidades”. Sendo que ela coloca as obrigações em primeiro plano. A criança tenta responder de modo invertido ao desejo da mãe. Alcione coloca o trabalho, mais precisamente a patroa em primeiro lugar, e os problemas do filho vem como detalhes. Queixa-se que deixa a família para ficar com a patroa, no decorrer das sessões se questiona porque faz isso, com as possíveis intervenções ela se dá conta que coloca a patroa no lugar da Mãe.
Nas sessões ela me demanda falar, quer resposta para o seu sofrimento, quer saber o que é certo, e o que é errado, assim como a patroa o faz. Não respondo nada, ela insiste, mas persisto em não responder as suas demandas. Ela questiona a diferença de estar ali, pagando alguém para escutá-la, pois não falo nada, não aponto o certo e o errado, como ela me pede. Com algumas pontuações, ela conclui que há diferença, pois ao falar ali passou a entender algumas coisas, e a fez mudar. Como exemplo saber que o filho precisa da atenção dela e não das coisas materiais. No próximo atendimento a paciente conta que conseguiu negar um pedido da patroa, deixou de trabalhar para ficar com filho e o marido. A demanda da patroa é tomada como o desejo de Alcione, pelo manejo transferencial abre-se a possibilidade dela dizer não a demanda do Outro e escutar algo do seu próprio desejo. Mas continua a me pedir um rumo, lhe pergunto do que ADIANTARIA (significante dela) mostrar-lhe o caminho, responde que seria bom, logo comete ato falho, “era meu filho que ia estar aqui”, marquei o ia, ela riu e conclui, “não ADIANTA trazer ele, pois o problema sou eu, eu que tenho que vir”.
Comenta que a vida exige, vive porque a Mãe, aquela que sabe, a pôs no mundo. Quando diz da dificuldade de viver, remete ao peso da obriga-ação, pois toma isso como tendo que responder a demanda da patroa. Às vezes fica em silêncio, “não dá para falar tudo, nem tudo dá para entender, nem tudo tem resposta”, algo do Real se impõe. Questiona-se se buscar resposta faz algo mudar. O Real é aquilo que não muda, que não cessa de se inscrever. Relação com a patroa aponta para um dos seus modos de gozo, seu modo de satisfação pulsional, o fato de querer ser mãe para filho marca o seu desejo. Está submetida ao imperativo de gozo do Outro primordial, lembrando que a mãe remete ao buraco. Quando pede o certo e o errado, quer garantia do Outro, tentando colocar analista no lugar da mãe. Questiono se faz o que outro diz ser certo, ai ela recua, responde que para certas coisas é teimosa, não adianta o que o outro fale, se quer, vai lá e faz. Tem a ver com o seu desejo, não respondendo a demanda do Outro.
Conclui que estar ali é uma “inventação de moda”. Tem algo de querer re-inventar sua história, sua existência. Saber fazer algo diferente com o seu sintoma, na medida em que o sujeito fica advertido do seu modo de gozo, da sua compulsão a repetição. Na análise aparece o sujeito dividido, querer e não querer, analista deve sustentar a questão, é o que move o ser. Ir ao sentido de limitar o gozo e abrir para o campo do desejo, pois desejo é condição para a vida.
A psicanálise é um tratamento por meio da linguagem, a fala tem seus poderes, e o analista não leva o paciente a uma fala plena, é nas sessões que o sujeito tem liberdade para falar. Quando o sujeito do analista fica apagado, é possível o sujeito do analisando se mostrar, pois o inconsciente é aquilo que está fora do mundo dos sentidos, é através da interpretação e do ato analítico que se cai no vazio, esvaziando a fala de sentido, possibilitando assim uma invenção, uma nova relação com o saber, podendo fazer algo diferente com o seu modo de gozo.


Referências bibliográficas
ANDRÉ, S. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder in: Ecritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. Seminário 9: A identificação. Inédito.
VALAS, P. As dimensões do gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
LACAN, J. Seminário 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
NOGUEIRA, L. C. O Campo Lacaniano: desejo e gozo. Psicol. USP [online]. vol.10 n.2, São Paulo 1999.

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