25 fevereiro 2010

Ato de Fundação

ATO DE FUNDAÇÃO DE
LALÍNGUA - ESPAÇO DE INTERLOCUÇÃO EM PSICANÁLISE



A que viemos?
Em meados de 2002, em Ribeirão Preto, um pequeno grupo desejou se reunir para discutir questões sobre uma prática clínica conduzida pela orientação lacaniana. Os encontros eram chamados de (Re)uniões Clínicas. A posteriori, podemos dizer que lá onde era esse desejo, uma formação psicanalítica pôde advir. Como ato, que sempre desconhece a si mesmo, essa formação teve início.
Podemos dizer que aquilo que sustentou o trabalho neste grupo e permitiu dar mais um passo – a criação de “Lalíngua - Espaço de Interlocução em Psicanálise” – foi a transferência de trabalho entre os participantes , bem como com o ensino de Freud e de Lacan, além do desejo pela clínica psicanalítica e da busca de um espaço para a tomada da palavra, o que não é pouca coisa e muito menos indiferente à formação em psicanálise.
Lalíngua, significante eleito para representar esse grupo e esse desejo, é uma palavra inventada por Lacan que remete ao papel fundamental da linguagem na estruturação do inconsciente. Apontando para um nó entre o sujeito do desejo e a língua, lalíngua fulgura nas formações do inconsciente e no discurso poético, enquanto a língua procura inutilmente apreendê-la, pois ela sempre escapa entre os dedos.
É interessante remeter ao contexto da “invenção” desse significante, que advém de um lapso de Lacan, ocorrido em seu seminário “Le savoir du psychanalyste”, em 4 de novembro de 1971: ao invés de citar o Vocabulário de Psicanálise, ele diz Vocabulário de Filosofia. O vocabulário de psicanálise foi elaborado por Laplanche, antigo discípulo de Lacan, enquanto que o de filosofia é de autoria de Lalande. Lalangue, como se nota, surge a partir de metonímias dos significantes Laplanche e Lalande, constituindo uma metáfora que Lacan prontamente valoriza como representante da verdade do inconsciente.
Laplanche foi discípulo de Lacan e, na época desse seminário, era seu opositor, pois afirmava que o axioma lacaniano – O inconsciente está estruturado como uma linguagem – poderia ser invertido, uma vez que para ele o inconsciente seria a condição da linguagem. Nada mais grosseiro, já que sua posição revela mais do que um desconhecimento do ensino que ele acompanhou tão de perto.
Lacan transforma seu lapso em uma resposta aos seus opositores, mas também em um conceito que marca sua interpretação pessoal e original da psicanálise, reafirmando mais uma vez o seu ensino para aqueles que o escutam. Lalangue é o significante inventado que marca a impossibilidade da inversão do axioma dentro da obra, apontando para a ascendência da linguagem sobre o corpo.
A tradução literal deste neologismo lalangue seria em português uma aglutinação do artigo definido com o substantivo, alíngua, mas nosso grupo acha que a tradução transcriativa de Haroldo de Campos (1989), proposta em sua conferência “O afrodisíaco Lacan na galáxia de lalíngua (Freud, Lacan e a escritura)”, além de sonoramente mais bonita que alíngua, nos parece aproximar-se melhor daquilo que Lacan considerou ao escolher a palavra, por esta manter uma relação com a “lalação” da criança, que é rica em sonoridades e repleta de equívocos. Os balbucios do bebê já se encontram estruturados pela língua materna, por essa lalíngua que antecede o sujeito, e já está lá antes de toda organização posterior da fala pela língua enquanto sistema.
Diante disso, podemos dizer que “Lalíngua – Espaço de Interlocução em Psicanálise”, sob a égide de Freud e Lacan, nasce com o desejo de, desafiadoramente, constituir uma comun(idade) que prevê um lugar de inscrição para o sujeito: excluído, sempre dividido e alienado de seu dizer. Um espaço que possa acolher a diferença de cada um, semeando a possibilidade de novas respostas a antigas questões, permitindo a invenção e a apropriação particular da teoria tomada como Outro incompleto. Trata-se de um espaço que pretende cultivar, ainda, a interlocução da psicanálise com outros campos do saber, procurando combater a unidade que estagna e investindo na unicidade de cada um, unicidade essa que abre a possibilidade lógica da inscrição em um laço social.
Hoje, já não somos um pequeno grupo. O ato passou por nós e produziu efeitos: nossas atividades diversificaram-se e surgiram mais demandas por formação em Ribeirão Preto e região. Da alienação à separação, transcorreu um tempo para a autorização possível a cada um em seu tempo, sustentada tanto pelo desejo, que sempre angustia, quanto pela escuta daqueles que nos antecederam e nos ajudaram a não ceder diante desse desejo. Além das (Re)uniões Clínicas, já oferecemos Grupos de Estudo, Cartéis, Jornadas, Seminários Clínicos e Conferências, fornecendo-nos novos espaços de formação e acolhendo novos desejantes.
A que viemos? Viemos àquilo que um dia terá sido, através desse ato.


1- No Ato de fundação da Escola Francesa de Psicanálise, Lacan afirma: “O ensino da psicanálise só pode transmitir-se de um sujeito para outro pelas vias de uma transferência de trabalho. Os “seminários”, inclusive nosso curso da École d’Études Supérieures, não fundarão nada, se não remeterem a essa transferência”. (Lacan, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003).
2- Referimo-nos aos analistas que introduziram a psicanálise lacaniana em Ribeirão Preto há cerca de 16 anos e aos que continuam a sustentar o seu ensino, ainda hoje, especialmente: Helena Bicalho, Sílmia Sobreira, Raymond Junek, Antonio Gonçalves e Marisa Baldi.

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